À beira do precipício pd51 | Page 32

A degradação do discurso público Luiz Sérgio Henriques N ão é simples nem alentador examinar termos e condições do discurso público neste momento, e não só no Brasil. Numa época de intensa transformação, como poucas o foram, o medo do futuro se instala, a capacidade de governo e autogoverno diminui até parecer negligenciável, atitudes irracio- nais se espalham como chamas, quando não são irresponsavel- mente atiçadas. As formas da democracia, que demandam certa dose de confiança para florescer, veem-se sob ataque frontal. Há quem diga que a ameaça, agora, vem da extrema direita, como antes vinha do que podemos chamar, num só bloco, de comu- nismo – ou melhor, a forma assumida pelo comunismo histórico, ao relegar a segundo plano uma relação positiva com as liberda- des próprias do liberalismo. Não é hora de meios-tons, nuances e sutilezas. Pulsões extre- mistas parecem soltas ao redor. A esfera pública se enche de narra- tivas e discursos de ódio. Pode ser que uma esquerda algo desorien- tada se tenha extraviado, nestes tempos pós-modernos, em reivindicações identitárias parciais, abandonando a dimensão universalista que sempre caracteriza as fases de avanço civilizató- rio e fornece o porto seguro para a ampliação dos direitos das mino- rias. Registrada esta crítica, deve-se logo após apontar que muito mais perigosos são a ação e o discurso de quem, detendo substan- ciais recursos materiais e simbólicos, leva adiante sua própria e feroz política de identidade. Donald Trump é o patrono mais em evidência da causa, mas também aqui, no Brasil, já se ouvem opiniões bizarras que clamam contra a opressão de que seriam víti- mas, sabe-se lá onde, homens brancos e heterossexuais. Uma característica recorrente do discurso público tem sido, nele, a falta de um componente de catarse. A palavra tem resso- nância clássica e diz respeito ao efeito de purificação sofrido pelo espectador da tragédia. Um nobre efeito, portanto, extraído da experiência de terror e medo posta em cena pelos grandes trági- cos. Na psicanálise, muitos séculos depois, a catarse viria a indi- car um trajeto de cura, quando o sujeito vê aflorar à consciência, 30