A degradação do discurso público
Luiz Sérgio Henriques
N
ão é simples nem alentador examinar termos e condições
do discurso público neste momento, e não só no Brasil.
Numa época de intensa transformação, como poucas o
foram, o medo do futuro se instala, a capacidade de governo e
autogoverno diminui até parecer negligenciável, atitudes irracio-
nais se espalham como chamas, quando não são irresponsavel-
mente atiçadas. As formas da democracia, que demandam certa
dose de confiança para florescer, veem-se sob ataque frontal. Há
quem diga que a ameaça, agora, vem da extrema direita, como
antes vinha do que podemos chamar, num só bloco, de comu-
nismo – ou melhor, a forma assumida pelo comunismo histórico,
ao relegar a segundo plano uma relação positiva com as liberda-
des próprias do liberalismo.
Não é hora de meios-tons, nuances e sutilezas. Pulsões extre-
mistas parecem soltas ao redor. A esfera pública se enche de narra-
tivas e discursos de ódio. Pode ser que uma esquerda algo desorien-
tada se tenha extraviado, nestes tempos pós-modernos, em
reivindicações identitárias parciais, abandonando a dimensão
universalista que sempre caracteriza as fases de avanço civilizató-
rio e fornece o porto seguro para a ampliação dos direitos das mino-
rias. Registrada esta crítica, deve-se logo após apontar que muito
mais perigosos são a ação e o discurso de quem, detendo substan-
ciais recursos materiais e simbólicos, leva adiante sua própria e
feroz política de identidade. Donald Trump é o patrono mais em
evidência da causa, mas também aqui, no Brasil, já se ouvem
opiniões bizarras que clamam contra a opressão de que seriam víti-
mas, sabe-se lá onde, homens brancos e heterossexuais.
Uma característica recorrente do discurso público tem sido,
nele, a falta de um componente de catarse. A palavra tem resso-
nância clássica e diz respeito ao efeito de purificação sofrido pelo
espectador da tragédia. Um nobre efeito, portanto, extraído da
experiência de terror e medo posta em cena pelos grandes trági-
cos. Na psicanálise, muitos séculos depois, a catarse viria a indi-
car um trajeto de cura, quando o sujeito vê aflorar à consciência,
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