ZINT Jun. 2017 | Page 35

identidade própria .
Lançado em 2014 , Corrente do Mal tem todos os requisitos de um filme de horror independente . Seja em seu orçamento enxuto e nas possibilidades limitadas de produção ( que inclusive estão presentes e justificadas em algumas escolhas narrativas do longa ) ou na estética independente assegurada pela fotografia do filme , o diretor David Robert Mitchell demonstra muita consciência e um pulso firme na confecção do ritmo de suspense necessário para filmes do gênero .
O verdadeiro esmero de Corrente do Mal reside no discurso social que o diretor se dispõem a trabalhar , subvertendo um elemento comum dos filmes de slasher . Se nos filmes de maníacos dos anos 80 os primeiros a morrer sempre eram os jovens que transavam , aqui toda a premissa da película , assim como a sobrevivência da protagonista , depende do ato sexual da mesma . É por meio de uma one night stand que a protagonista Jay acaba recebendo uma maldição que , de acordo com a mitologia construída no enredo , perseguiria a jovem até que ela passasse o fardo adiante , por meio de outra relação sexual .
Além da metáfora clara sobre doenças sexualmente transmissíveis , Mitchell é cirúrgico ao escolher a cidade de Detroit como ambientação para o longa . O uso dos vários planos abertos para captar os cenários de desolação de uma cidade que outrora foi símbolo do American Way of Life funcionam perfeitamente para construir a sensação melancólica de insegurança que o filme explora , trabalhando com mais uma representação de uma característica da sociedade americana contemporânea .
Mas , talvez , de todos os bons filmes do gênero lançados nos últimos cinco anos , Corra ! ( 2017 ) seja a produção que mais edifica um posicionamento social claro . Na trama acompanhamos o jovem negro Chris Washington que namora Rose Armitage , uma garota branca que pretende levar seu namorado para conhecer sua família . A partir desta premissa simples , o diretor Jordan Peele , que também assina o roteiro , desenvolve um filme repleto de nuances e críticas sociais afiadas ao racismo existente nos Estados Unidos , mas que consegue ultrapassar limites regionais e identificar situações que acontecem no Brasil .
Com a chegada à casa dos pais e o consequente convívio com a família , o roteiro usa de Chris para guiar o espectador por acontecimentos assombrosos , explorando as inúmeras possibilidades do que pode estar por vir . O ritmo crescente e tenso da produção permite um jogo psicológico com espectador , que acaba sentindo na pela o desconforto e a desconfiança da personagem .
A sensação de perigo e urgência não se exaure em momento algum , mantendo o espectador com uma sensação de tensão por toda a projeção . Se dos horrores que a trama apresenta na virada do segundo para o terceiro ato , e principalmente em seu desfecho , Peele discute o racismo ostensivo e claro , é na inocência de Rose que consegue abordar as atitudes mais sutis da sociedade , mas que são igualmente preconceituosas .
Se os sogros do protagonista funcionam como uma espécie de arquétipo dos liberais americanos preconceituosos que “ votariam em Obama por uma terceira vez ”, como o próprio filme coloca , a personagem Rose é uma representação de um “ dedo na ferida da sociedade ”, evidenciando atitudes muitas vezes normalizadas ou que são pouco problematizadas .
De todos os merecidos elogios , Corra ! se destaca por , mesmo depois de sua revelação mais forte que resolve o quebra-cabeça construído na trama , conseguir manter o espectador preso à jornada de Chris , reservando um último momento tão angustiante e pungente quanto à problemática social trabalhada como subtexto .
Apesar de estes últimos três filmes não possuírem uma temática específica conjunta , todos trabalham discursos sociais relevantes e urgentes na sociedade contemporânea atual . Talvez seja difícil cravar o início de um novo ciclo , um que poderia ser sustentado por representações de minorias e de subversões do próprio gênero , mas é inegável que a última década tem sido um período repleto de excelentes filmes de horror , produzidos por realizadores conscientes das possibilidades discursivas e reflexivas de um dos gêneros mais importantes da sétima arte .
Pôster
de Corra ! ( 2017 ), terror que trabalha com críticas ao racismo e outras questões sociais