Wink Wink Mag #22 | Page 107

Foi um amigo, conhecedor profundo de indie rock, quem deu a dica: Anna Calvi. “É cantora e compositora, da linha de Patti Smith e PJ Harvey.” Antes de ouvir, fui ao Google Imagens. Estava lá o rosto angelical, de olhos claros e sorriso reprimido. Todo o aspecto frágil da cantora/compositora que solta os bichos na música. Lembrei de Patti Smith e suas fotos rebeldes, mas quando a encontrei em um saguão de hotel era pequena e introspectiva, extremamente gentil. No palco, porém, mandou cusparadas ao público e driblou a segurança para jogar-se à plateia. Anna Calvi parece uma espécie de Dr. Jekyll e Mr. Hide. Talvez caiba às tímidas a capacidade de expor publicamente as vísceras para, na vida pessoal, manter o resguardo. Se, no personagem de Robert Louis Stevenson, há um desvio psiquiátrico alusivo, em Anna Calvi a complexidade extrapola a dupla personalidade. Não há, na menina inglesa nascida em 1982, transtornos extremos, mas uma capacidade de criar sua própria realidade a partir da infância, quando um problema de quadril a obrigou a permanecer internada até os três anos de idade. Entre diversas cirurgias, procurou a abstração em jogos imaginários. Era sua forma de brincar. Já adolescente, seu quarto tornou-se um universo. Lá, desenvolvia histórias e imagens, mais do que música. Daí o apego ao cinema e às artes plásticas. Quando a música finalmente se impôs como expressão maior, não veio apenas em melodia. Os entremeios, os contornos, a periferia e a ambientação mostraram-se profundamente construídos. Não é de assustar, portanto, a influência de Debussy – ela pensou em ser pintora e adotou parâmetros do impressionismo musical – e Ravel, cujo crescendo circular carrega elementos de transe – assim como os estertores poéticos da própria Patti Smith. Sim, as referências são distantes, mas se cruzam em Anna Calvi. Tanto quanto a guitarra de Jimi Hendrix, cujo feito maior, mais do que os solos alucinantes, estava na criação apaixonada de timbres e atmosferas. Outras influências despontam, como Edith Piaf, uma sofrida contadora de histórias, cujo clima de cabaré também se faz presente em One Breath, o segundo disco de Anna Calvi lançado pela independente Domino Records. Parece um samba do crioulo doido, eu sei, mas temos aqui elementos básicos: a ambientação, a imagem talhada em som e a narrativa predominantemente sensual. Anna Calvi não se parece com Hendrix, Debussy, Ravel, Piaf ou Patti Smith. Eles apenas estiveram em seu quarto de sonhos para que a inglesa construísse a própria obra. E ajudam a entendê-la. Assim, fica mais fácil compreender porque Anna Calvi trocou o violino – que aprendeu desde menina até se formar no instrumento pela Universidade de Southampton – pela guitarra Fender Telecaster, que leva aos palcos tentando “imitar uma orquestra”, como revela ao site da Domino Records. Gêneros que trazem sentimentos à tona, como o blues e o flamenco, ajudaram nesta formação, iniciada com o pai italiano, fanático por música. Suddenly abre o disco com um ostinato bastante percussivo, enquanto a melodia principal e marcante permanece discreta ao fundo. A canção dispersa ligeira em um interlúdio lírico – onde Calvi mostra sua extensão vocal – para reafirmar o refrão, que será repetido, como em Ravel, à exaustão, retornando em ciclos de complexidades variadas. A melodia é pop e dançante. Mas obedece a uma dinâmica de avanços e recuos e, a cada retorno, a frase melódica cresce. A ponto de se transformar na segunda música, Eliza, também marcada pelos graves da bateria, como um nervoso tímpano de orquestra (o tema reaparece disfarçado em Sing to me, Tristan, Carry me over, Bleed it to me e The Bridge – o que Wagner chamaria de leitmotiv, uma melodia de ligação entre temas e personagem). Agora a voz está mais límpida, menos sussurrada, como se os véus caíssem. O sexo vem à tona. A terceira faixa, Piece by piece, começa numa rápida desconstrução típica da música eletroacústica. Mas logo cede ao pop em voz langorosa. Quando a repetição quase minimalista entrega-se à melodia, surge uma cantora cada vez mais surpreendente, capaz de discretos falsetes eróticos. Cry mostra quanto o universo de Anna Calvi é dominado pelo temperamento da autora. A guitarra torna-se selvagem, mas é imediatamente controlada, como se os instintos buscassem romper a leve camada racional da canção. À primeira vista, One Breath é cru como o indie rock exige. As melhores descobertas do lançamento dependem de audições atentas, pois o quarto onde Anna Calvi libera seus monstros não permite, assim tão fácil, a entrada de luz.