Foi um amigo, conhecedor profundo de indie rock, quem deu a dica: Anna Calvi. “É cantora e
compositora, da linha de Patti Smith e PJ Harvey.” Antes de ouvir, fui ao Google Imagens. Estava lá o
rosto angelical, de olhos claros e sorriso reprimido. Todo o aspecto frágil da cantora/compositora que
solta os bichos na música. Lembrei de Patti Smith e suas fotos rebeldes, mas quando a encontrei em
um saguão de hotel era pequena e introspectiva, extremamente gentil. No palco, porém, mandou
cusparadas ao público e driblou a segurança para jogar-se à plateia.
Anna Calvi parece uma espécie de Dr. Jekyll e Mr. Hide. Talvez caiba às tímidas a capacidade de expor
publicamente as vísceras para, na vida pessoal, manter o resguardo. Se, no personagem de Robert
Louis Stevenson, há um desvio psiquiátrico alusivo, em Anna Calvi a complexidade extrapola a dupla
personalidade. Não há, na menina inglesa nascida em 1982, transtornos extremos, mas uma capacidade
de criar sua própria realidade a partir da infância, quando um problema de quadril a obrigou a
permanecer internada até os três anos de idade. Entre diversas cirurgias, procurou a abstração em jogos
imaginários. Era sua forma de brincar.
Já adolescente, seu quarto tornou-se um universo. Lá, desenvolvia histórias e imagens, mais do que
música. Daí o apego ao cinema e às artes plásticas. Quando a música finalmente se impôs como
expressão maior, não veio apenas em melodia. Os entremeios, os contornos, a periferia e a ambientação
mostraram-se profundamente construídos. Não é de assustar, portanto, a influência de Debussy – ela
pensou em ser pintora e adotou parâmetros do impressionismo musical – e Ravel, cujo crescendo
circular carrega elementos de transe – assim como os estertores poéticos da própria Patti Smith. Sim, as
referências são distantes, mas se cruzam em Anna Calvi. Tanto quanto a guitarra de Jimi Hendrix, cujo
feito maior, mais do que os solos alucinantes, estava na criação apaixonada de timbres e atmosferas.
Outras influências despontam, como Edith Piaf, uma sofrida contadora de histórias, cujo clima de cabaré
também se faz presente em One Breath, o segundo disco de Anna Calvi lançado pela independente
Domino Records.
Parece um samba do crioulo doido, eu sei, mas temos aqui elementos básicos: a ambientação, a
imagem talhada em som e a narrativa predominantemente sensual. Anna Calvi não se parece com
Hendrix, Debussy, Ravel, Piaf ou Patti Smith. Eles apenas estiveram em seu quarto de sonhos para que a
inglesa construísse a própria obra. E ajudam a entendê-la.
Assim, fica mais fácil compreender porque Anna Calvi trocou o violino – que aprendeu desde menina
até se formar no instrumento pela Universidade de Southampton – pela guitarra Fender Telecaster, que
leva aos palcos tentando “imitar uma orquestra”, como revela ao site da Domino Records. Gêneros que
trazem sentimentos à tona, como o blues e o flamenco, ajudaram nesta formação, iniciada com o pai
italiano, fanático por música.
Suddenly abre o disco com um ostinato bastante percussivo, enquanto a melodia principal e marcante
permanece discreta ao fundo. A canção dispersa ligeira em um interlúdio lírico – onde Calvi mostra
sua extensão vocal – para reafirmar o refrão, que será repetido, como em Ravel, à exaustão, retornando
em ciclos de complexidades variadas. A melodia é pop e dançante. Mas obedece a uma dinâmica de
avanços e recuos e, a cada retorno, a frase melódica cresce. A ponto de se transformar na segunda
música, Eliza, também marcada pelos graves da bateria, como um nervoso tímpano de orquestra (o
tema reaparece disfarçado em Sing to me, Tristan, Carry me over, Bleed it to me e The Bridge – o que
Wagner chamaria de leitmotiv, uma melodia de ligação entre temas e personagem). Agora a voz está
mais límpida, menos sussurrada, como se os véus caíssem. O sexo vem à tona.
A terceira faixa, Piece by piece, começa numa rápida desconstrução típica da música eletroacústica. Mas
logo cede ao pop em voz langorosa. Quando a repetição quase minimalista entrega-se à melodia, surge
uma cantora cada vez mais surpreendente, capaz de discretos falsetes eróticos. Cry mostra quanto o
universo de Anna Calvi é dominado pelo temperamento da autora. A guitarra torna-se selvagem, mas é
imediatamente controlada, como se os instintos buscassem romper a leve camada racional da canção.
À primeira vista, One Breath é cru como o indie rock exige. As melhores descobertas do lançamento
dependem de audições atentas, pois o quarto onde Anna Calvi libera seus monstros não permite, assim
tão fácil, a entrada de luz.