literatura
Por Paulo Briguet
Ilustração Bianca Pozzi
o anjo de
natal
Crônica natalina em memória de Bernard Nathanson*
(1926-2011) e de outro médico muito especial
Caro dr. José:
Estávamos preparando a ceia de Natal quando decidi retirar-me para
a grande mesa de madeira da sala e ler as notícias do dia. Costumo
fazer isso de manhã, antes que todos acordem. Hoje, não. A casa
está repleta de pessoas queridas – entre elas meu filho, minha nora
e meus netinhos gêmeos de dois an os –, por isso adiei a leitura do
noticiário para o fim da tarde.
O jornal informa que o sr. morreu dias atrás, aos 85 anos, de causas
naturais, em sua chácara no distrito do Espírito Santo. O obituário,
de apenas três linhas, informa que o seu corpo foi sepultado no
cemitério distrital que um dia, há muitos anos, conheci como
repórter, e posso dizer, sem medo de errar, que é um dos menores
cemitérios do planeta, próximo a uma capela dos tempos da
colonização.
Quando li o seu nome no jornal, fechei os olhos. Meu filho, com um
dos meninos no colo, perguntou se eu estava me sentindo bem.
“Não foi nada, João. Acho que exagerei um pouco na cerveja ontem.
Vou até o escritório rezar um pouco.”
Caminhei até a prateleira dos livros, retirei dentre os volumes uma
velha Bíblia que pertencera a meu pai e rezei um salmo em silêncio.
Repeti tantas vezes a oração até decorar os versos. Meu pecado está
sempre diante de mim.
Choveu muito naquela tarde de domingo em Londrina. Minhas
mãos tremiam enquanto eu folheava a lista telefônica. Liguei para
seis médicos que eu havia conhecido em entrevistas para o jornal e
me pareciam dignos de confiança. Nenhum deles atendeu. Então,
Isabel sugeriu-me o seu nome.
Você atendeu a ligação depois do terceiro toque. Percebi que estava
escutando música. “Espere um momento. Vou baixar o volume da
vitrola.” Achei engraçado o uso do termo “vitrola” para se referir ao
aparelho de som. Nos poucos instantes em que você se levantou
para diminuir o volume da música, notei a combinação de vozes e
violinos. “Os trovões estão fortes”, você disse, ao voltar.
104 WINK mag
Marcamos uma consulta na manhã de segunda-feira. As lojas
começavam a fazer propaganda para as vendas natalinas. O
taxista que nos levou era boliviano ou paraguaio; até hoje não sei
exatamente, porque falava com um sotaque muito carregado e não
conseguimos entender nada.
Não havia secretária na clínica. Ficamos esperando numa poltrona
alaranjada de feltro, muito semelhante ao estofamento da Brasília do
paraguaio (ou boliviano). Na parede, havia a gravura de um coração
com uma legenda: Inveni cor meum. Você mesmo surgiu à porta e nos
conduziu por um longo corredor até o consultório.
O exame foi rápido. “Três meses”, você disse. Por alguns segundos,
a sua boca se moveu silenciosamente na meia-luz do consultório
amadeirado, como se estivesse recitando um poema. “Três meses,
doze semanas, noventa dias. Um homem não fica maior se você
disser a sua altura em centímetros. Mas também não fica menor.”
Em um gesto rápido, você abriu a gaveta da escrivaninha e retirou
de lá uma pequena peça de gesso. Pediu que eu estendesse a mão
direita e colocou o objeto no centro da palma. Isabel soltou um
grito. Você moveu os lábios por mais alguns instantes e informou:
“Isso que você tem na mão é uma réplica exata do seu filho. Que tal
dar a ele o nome de João?”.
Enquanto eu segurava o boneco de gesso, Isabel chorava como
uma criança. Atrás da mesa, havia uma estante de livros e um busto
de gesso. Com a mão esquerda, também trêmula, apontei a estátua:
“Quem é esse homem, doutor?” Você respondeu: “João Sebastião
Bach. O autor da música que eu estava ouvindo na vitrola ontem,
quando você ligou. Sabia que ele teve vinte filhos?”.
Obrigado, José.
* Bernard Nathanson (1926-2001) foi um médico norte-americano. Nos anos
70, liderou o movimento pela legalização do aborto nos EUA. Em sua clínica,
realizou pessoalmente milhares de abortos. Com os avanços na tecnologia
de ultrassom, reviu sua posição, converteu-se ao catolicismo e tornou-se um
dos mais destacados ativistas pró-vida em todo o mundo.