supor que a brutalidade do fato possa mover atores políticos e
sociais para fora do próprio umbigo e de suas zonas de conforto,
de modo a fortalecer a intervenção federal que o crime possivel-
mente tentou desestabilizar e concretamente ameaça, tenha
havido ou não esta intenção prévia. Aqui não se trata de supor –
até porque seria quimérico – apoio unânime e explícito a todos os
atos da intervenção. Aclamações iludiriam mais do que ajuda-
riam. Trata-se de esperar consenso mínimo entre democratas em
torno das necessidades de mantê-la e de não trabalhar contra seu
êxito, neste momento crítico.
Afasto-me do niilismo que previamente nega validade à expec-
tativa de que os atores envolvidos, em presença do perigo, levem em
consideração o interesse público, sem prejuízo de manterem ressal-
vas que parte deles já fazia à intervenção, antes de acontecer o
atentado. A capitulação da razão diante do puro cálculo não é uma
fatalidade. Atores políticos tanto podem realmente ser tragados por
um vale tudo cego e desregrado, como podem ser capazes, sim, de
detectar o efeito bumerangue que contra si provocam a erosão de
valores democráticos e danos à convivência social, embutidos na
leniência para com um tipo de terrorismo que se insinua nas tênues
linhas divisórias entre Estado e sociedade. A moderação da luta
político-partidária, neste momento, em proveito do combate ao
crime, não seria atitude altruísta e sim uma conduta virtuosa
guiada, também, por um interesse bem compreendido.
É fato que esta segunda implicação da lógica e da ética pública
– o interesse bem compreendido – não se impôs até aqui. Após a
comoção aguda das primeiras horas, o que se vê não é uma cris-
talina conversão das emoções em força democrática unitária. Há
sinais nessa direção, mas também os há na direção oposta. Ao
impacto emocional também tem sucedido uma racionalidade
instrumental que anima alguns atores relevantes a tentarem tirar
proveito político da situação. Este aspecto não tem passado
despercebido nas análises, mas as censuras a esta conduta
surgem, via de regra, com um viés de reiteração da crítica difusa
ao oportunismo dos “políticos”. A realidade manda que se estenda
a crítica também ao ambiente externo à sociedade política, pois
esta não monopoliza o oportunismo.
O crime que vitimou Marielle Franco sugere, a diversas áreas
formadoras de opinião, reforçar o ceticismo e as suspeitas que já
anteriormente estas mesmas áreas lançavam sobre intenções,
procedimentos e as chances de êxito da intervenção. Além de
Segurança pública e política: sem Marielle, mas com franqueza
23