Riscos que nos ameaçam PD50 | Page 156

moradia coletiva tem-se a síntese alegórica da sociedade antiga. Sob a aparência de iluminar, tem-se antes um obscurecimento do que a busca radical da verdade. A atmosfera é sufocante. Seja quando Sócrates propõe que há um mundo das ideias, anterior a tudo, do qual a realidade seria uma “cópia”, seja quando “se redime como filósofo” e propõe que esse mundo ideativo é como um espelho, um reflexo do real na mente, os dois modelos se complementam numa relação de “adequação” como verdade. Isso provém de um modelo matemático: X = Y. Tanto faz dizer: Y = X, para distinguir materialismo de idealismo. Quando Descartes faz sua “revolução moderna”, ele se mantém no mesmo parâmetro de ideias claras e distintas, de modelo geométrico e matemático. Aí, um triângulo é uma figura geométrica com 3 ângulos, que não pode ter 4, 5 ou 6, embora os três outros estejam nela; um quadrado tem 4 lados, quando se esquecem de somar os de dentro com os de fora. O princípio da não-contradição é um meio de reprimir a liber- dade de pensar. Ele está embutido na alegoria da caverna. Um vetor central na República é que a sucessão de formas de governo ocorre pelas características de cada uma delas, pela dialética interna de suas contradições, e não pela ação externa de uma entidade como uma Divina Providência. A rigor, nesse sentido, dispensa-se a autoridade de um “mundo das ideias” que ditasse as regras do devir laico dos governos. Se não há fator divino na evolução da história, o mundo das ideias também não precisaria existir como algo à parte. A “visão grega do mérito” não admitia mérito em quem não tivesse sangue nobre: o “filósofo” somente pode surgir entre os membros da “classe ociosa”, assim como, na trilogia tebana de Sófocles, aquele que chega ao poder por mérito aparente, ser o mais esperto, Édipo, é filho do rei anterior. Quem diz que a esfinge se matou? Édipo. A esfinge do poder não se suicida só porque alguém enunciou ou denunciou sua natu- reza. Ela tem cara de pau e adeptos que votam nela. Ela sai do encontro disfarçada de Édipo, que nem sabe quem ele é. A tese implícita de Sócrates é que alguém nasce pronto para governar, mas precisa ter uma formação escolar especial. Somente há de se desenvolver o país que tiver escolas de elite. Como esco- lher, no entanto, os mais aptos? Platão deixa isso por conta do milagre de alguém se libertar das cadeias que o prendem. Dribla assim o problema político. 154 Flávio R. Kothe