moradia coletiva tem-se a síntese alegórica da sociedade antiga. Sob
a aparência de iluminar, tem-se antes um obscurecimento do que a
busca radical da verdade. A atmosfera é sufocante.
Seja quando Sócrates propõe que há um mundo das ideias,
anterior a tudo, do qual a realidade seria uma “cópia”, seja quando
“se redime como filósofo” e propõe que esse mundo ideativo é como
um espelho, um reflexo do real na mente, os dois modelos se
complementam numa relação de “adequação” como verdade. Isso
provém de um modelo matemático: X = Y. Tanto faz dizer: Y = X,
para distinguir materialismo de idealismo. Quando Descartes faz
sua “revolução moderna”, ele se mantém no mesmo parâmetro de
ideias claras e distintas, de modelo geométrico e matemático. Aí,
um triângulo é uma figura geométrica com 3 ângulos, que não
pode ter 4, 5 ou 6, embora os três outros estejam nela; um quadrado
tem 4 lados, quando se esquecem de somar os de dentro com os de
fora. O princípio da não-contradição é um meio de reprimir a liber-
dade de pensar. Ele está embutido na alegoria da caverna.
Um vetor central na República é que a sucessão de formas de
governo ocorre pelas características de cada uma delas, pela
dialética interna de suas contradições, e não pela ação externa de
uma entidade como uma Divina Providência. A rigor, nesse
sentido, dispensa-se a autoridade de um “mundo das ideias” que
ditasse as regras do devir laico dos governos.
Se não há fator divino na evolução da história, o mundo das
ideias também não precisaria existir como algo à parte. A “visão
grega do mérito” não admitia mérito em quem não tivesse sangue
nobre: o “filósofo” somente pode surgir entre os membros da “classe
ociosa”, assim como, na trilogia tebana de Sófocles, aquele que chega
ao poder por mérito aparente, ser o mais esperto, Édipo, é filho do rei
anterior. Quem diz que a esfinge se matou? Édipo. A esfinge do poder
não se suicida só porque alguém enunciou ou denunciou sua natu-
reza. Ela tem cara de pau e adeptos que votam nela. Ela sai do
encontro disfarçada de Édipo, que nem sabe quem ele é.
A tese implícita de Sócrates é que alguém nasce pronto para
governar, mas precisa ter uma formação escolar especial. Somente
há de se desenvolver o país que tiver escolas de elite. Como esco-
lher, no entanto, os mais aptos? Platão deixa isso por conta do
milagre de alguém se libertar das cadeias que o prendem. Dribla
assim o problema político.
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Flávio R. Kothe