Riscos que nos ameaçam PD50 | Page 155

são corporais assim como estes são também “espirituais”. Há algo mais nesse erro. O que ia para o consumo da boca, do nariz e da pele era gerado por trabalho feito por escravos – roupas, sandálias, alimentos, massagens, aromas –, enquanto pinturas e esculturas, música e peças teatrais, casas e praças eram feitas por trabalhadores livres. A diferença de corpo e alma decorria da diferença do valor social do labor. Platão achava que na língua grega seria inapro- priado dizer uma bela comida, um belo perfume, mas na lingua- gem brasileira isso já não soa tão estranho, só que para ele não se poderia filosofar senão em grego. Não há por que a língua grega deva ser parâmetro mundial, conforme impera na lógica até hoje. Não está no Gênesis que ela tenha sido a língua adâmica. Subjacente a isso deve haver algo mais. A obra de arte é mais significativa que o artesanato, mesmo quando este seja adornado. A significação da obra de arte tem sido vista como expressão da ideia, a manifestação da verdade, a revelação da alétheia. Ela é, porém, algo mais do que um agente transmissor de algo cuja vali- dade pretende estar fora dela. De qualquer modo, fica impresso que o “escravo” não teria nada a dizer. E isso se confirma no livro VII da República. Outro ponto central que não é discutido na Politeia é o que se entenderia por mérito. O que a uns parece mérito, conforme deter- minado paradigma, pode ser visto como demérito ou carência de méritos segundo outros paradigmas. A correta aplicação parece verdadeira para quem não vai além deles. Juízes julgam, conforme paradigmas, apenas o que consta nos autos do processo, mas quem garante que tudo o que é atinente ao caso consta dos autos e quem julga os paradigmas, a leitura que fazem os juízes? Na Igreja essa questão é reprimida pelo voto de obediência, pela propaganda sacralizadora, pela crença no absoluto. Até mesmo Freud disse, ao querer a expulsão de jovens brilhantes da socie- dade psicanalítica, que preferia a instituição aos gênios. A univer- sidade brasileira é uma instituição marcada pela perseguição e discriminação contra o talento. Não discutir o mérito do mérito não é ocasional, mas determi- nado pelo movimento ideológico subjacente à obra, que leva a olvidar o sentido de verdade como “alétheia”, como um desvelamento, para optar pela “correção conforme paradigmas”. Há um paradigma básico na “casa” que é a caverna e que não é questionado. Nessa Mentiras na verdade da República 153