Riscos que nos ameaçam PD50 | Page 154

Adorno achou que a condição de mercadoria degradava a obra de arte. Para o artista e o intelectual, no entanto, conseguir que suas obras sejam adquiridas significa que alguém decidiu trocar um tempo do seu trabalho pelo tempo deles. Isto envolve uma valorização do produto e não apenas a sua degradação. O pior para quem produz é não conseguir vender. Dizer que a arte tem função no capitalismo por não ser útil é não perceber quão útil é a estetização para a dominação social. Basta ver os santinhos que se vendem nas épocas de eleição e os capetas que estão por baixo. Com a industrialização capitalista, o direito de comprar e vender no mercado e a semelhança nas condições de trabalho, bem como a crença cristã numa comunidade fundamental, impu- seram a igualdade como paradigma. Ela não é, contudo, um valor apenas necessário à mecânica do mercado. Foi herdada pela revo- lução socialista, mas já é um tema central na Grécia antiga. Este princípio vem sendo lido como igualação do desigual, mas pode ser interpretado também como respeito à desigualdade do desi- gual. Igual nos humanos é serem desiguais e finitos (com a pretensão de serem infinitos). Crê-se que todos devam ter iguais oportunidades. Mesmo que essa crença seja praticada, quem é desigual não aproveita igualmente oportunidades iguais. E quem mais aproveita pode se tornar um malandro melhor treinado. Se a estrutura social continua sendo de uma minoria que vive bem às custas do trabalho da maioria, pode-se entender que não se tenha desenvolvido uma sensibilidade para a desigualdade. Os filó- sofos tendem a estar mancomunados com a exploração de classe e não se preocupam com isso. A inovação filosófica moderna deu-se, porém, quando a noblesse de robe, ou seja, a burguesia esclare- cida, pôs-se a pensar. Heidegger, por exemplo, discute vários aspec- tos do mito da caverna, mas não considera o problema social subja- cente. Não é problema para ele. E ele era mais inteligente. Mérito No Hipias Maior, como em outros textos, Platão afirma, cate- górico, que a arte se volta apenas para os sentidos da visão e da audição. Essa proposição foi repetida por filósofos como Solger e Hegel, mantendo-se inquestionada até hoje nas universidades. A divisão de obras feitas pelo homem entre arte e artesanato é proposta como uma divisão sensorial: haveria dois sentidos superiores, espirituais, e três inferiores, corporais. Ora, aqueles 152 Flávio R. Kothe