Riscos que nos ameaçam PD50 | Page 150

truque filológico é, então, empurrar o “erro” para um personagem como Sócrates, a fim de preservar o autor Platão. Embora se deva distinguir o que Sócrates diz do que ele pensa, do que Platão pensa sobre o que Sócrates pensa, sobre o que Sócrates diz, Platão não é tão inocente. Há omissões e distorções graves. Temos de ler Platão contra Platão para chegar a Platão. Mesmo que, na República, haja a transição de um Sócrates dogmático para um que parece pensar, esse “progresso” não é acompanhado por uma evolução de Glauco, em geral um coroinha a dizer amém em vez de ser um antagonista. O diálogo é apenas aparente, não há dialogismo. Na República, as formas de governo decorrem umas das outras por suas características, mas por baixo desse laicismo aparente há a teologia de que só poderá bem governar quem tiver sangue divino: o aristocrata. Sócrates propõe-se criar um Estado mais justo, uma forma de governo que seja capaz de exercer o bem comum. Aparece, portanto, repleno de boas intenções: aparenta querer o bem comum, quando, de fato, pretende, sob a aparência de meritocracia, aperfeiçoar a aristocracia escravista de sangue. Nem todo aristocrata tem vocação e jeito para o poder. O filho mais novo pode ser mais hábil do que o mais velho, como se mostra nos filhos de Édipo ou de patriarcas bíblicos. O mundo das ideias é proposto como contrapartida ao “mundo das cópias”, para “resolver”, de modo mágico, um impasse para o qual o autor parecia não ter a solução, ou seja, sob a aparência de como se pode chegar à identidade de coisas diversas, ver como se esco- lheria o mais hábil dos herdeiros senhoriais para garantir o domínio de sua classe. A Igreja Católica implantou esse sistema, e ele funciona há milênios, sem que se questione seu fundamento: qual é o mérito do mérito? Quem questionou isso foi reprimido, pagou com exclu- são, tortura e morte. Platão aparenta buscar o que é justiça, já que não basta a resposta de que ela é a vontade do mais forte, mas pressupõe como justas a escravidão e a aristocracia de sangue. Aparenta propor a melhor forma de governo, já que todas as exis- tentes são problemáticas, mas não problematiza a sua. Ao contrário da crença democrática hodierna, dominada por pressupostos teológicos cristãos de igualdade, Sócrates não está convencido de que a melhor forma de governo seja a democracia, pois ela é para ele uma feira livre em que todos gritam, achando que podem dar palpite em tudo, especialmente no que não enten- 148 Flávio R. Kothe