truque filológico é, então, empurrar o “erro” para um personagem
como Sócrates, a fim de preservar o autor Platão. Embora se deva
distinguir o que Sócrates diz do que ele pensa, do que Platão pensa
sobre o que Sócrates pensa, sobre o que Sócrates diz, Platão não é
tão inocente. Há omissões e distorções graves. Temos de ler Platão
contra Platão para chegar a Platão. Mesmo que, na República, haja
a transição de um Sócrates dogmático para um que parece pensar,
esse “progresso” não é acompanhado por uma evolução de Glauco,
em geral um coroinha a dizer amém em vez de ser um antagonista.
O diálogo é apenas aparente, não há dialogismo.
Na República, as formas de governo decorrem umas das outras
por suas características, mas por baixo desse laicismo aparente
há a teologia de que só poderá bem governar quem tiver sangue
divino: o aristocrata. Sócrates propõe-se criar um Estado mais
justo, uma forma de governo que seja capaz de exercer o bem
comum. Aparece, portanto, repleno de boas intenções: aparenta
querer o bem comum, quando, de fato, pretende, sob a aparência
de meritocracia, aperfeiçoar a aristocracia escravista de sangue.
Nem todo aristocrata tem vocação e jeito para o poder. O filho
mais novo pode ser mais hábil do que o mais velho, como se
mostra nos filhos de Édipo ou de patriarcas bíblicos. O mundo
das ideias é proposto como contrapartida ao “mundo das cópias”,
para “resolver”, de modo mágico, um impasse para o qual o autor
parecia não ter a solução, ou seja, sob a aparência de como se
pode chegar à identidade de coisas diversas, ver como se esco-
lheria o mais hábil dos herdeiros senhoriais para garantir o
domínio de sua classe.
A Igreja Católica implantou esse sistema, e ele funciona há
milênios, sem que se questione seu fundamento: qual é o mérito
do mérito? Quem questionou isso foi reprimido, pagou com exclu-
são, tortura e morte. Platão aparenta buscar o que é justiça, já
que não basta a resposta de que ela é a vontade do mais forte, mas
pressupõe como justas a escravidão e a aristocracia de sangue.
Aparenta propor a melhor forma de governo, já que todas as exis-
tentes são problemáticas, mas não problematiza a sua.
Ao contrário da crença democrática hodierna, dominada por
pressupostos teológicos cristãos de igualdade, Sócrates não está
convencido de que a melhor forma de governo seja a democracia,
pois ela é para ele uma feira livre em que todos gritam, achando
que podem dar palpite em tudo, especialmente no que não enten-
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Flávio R. Kothe