Revista Redescrições | Page 98

98 rudimentar do trabalho em caça e em criação de crianças, então a emergência deste tipo singular de humano reprodutor (singular reproducing type of human), que pode viver quase autonomamente, é ligeiramente preocupante. Tenho, aqui, duas questões: você acabou de descrever a intimidade, a intimidade diádica, como algo que constitui espaço. O que disso sobrevive na cultura do apartamento? E não há formas de coexistência que causam impacto no espaço entre polos extremos, tais como o singular e a massa, o solitário e a assembleia? A primeira questão é mais fácil de responder: os individualistas de apartamento descobriram um processo que os permite formar pares com eles mesmos – incidentalmente, Andy Warhol, a quem já mencionei, foi um dos primeiros a mostrar isso explicitamente, ao afirmar que se casou com o seu gravador. A autogamia moderna envolve a escolha de uma postura de “experimentar” a própria vida, encarando-a, avaliativamente, do lado de fora. Os indivíduos, na era de uma cultura de experiências, constantemente buscam diferenças de si mesmos. Não podem escolher, como seus parceiros, outro algum que não eles mesmos como Outro interior. O forte individualismo (indivi-dualism) sempre presume que você desenhe internamente o segundo polo e os outros polos que são parte de uma estrutura de personalidade comp-leta (comp-lete). A base para este movimento psico-estrutural se deu há tempos na cultura europeia, e seus elementos podem ser rastreados na antiguidade clássica. O exemplo arquetípico são os monges eremitas que se mudaram para o deserto de Tebas, a poucos dias de viagem em direção ao sul de Alexandria, a fim de orar. Até onde sabemos, eles levaram vidas interiores que apresentaram muitas relações; o mais famoso dentre eles é Santo Antônio, que foi visitado por espíritos atormentadores tantas vezes, que não foi possível haver nenhum relato sobre ele ter vivido sozinho. Para colocar isso em termos modernos, ele compartilhou do mesmo travesseiro com as suas alucinações. Hoje, ele provavelmente viveria numa ala psiquiátrica, entupido de tranquilizantes. Como essa forma extrema de individuação se diferencia do autismo? A pessoa autista não possui a espacial-idade (spacious-ness) interior que a torne apta para ser sua própria companhia. A estrutura de suplementação de si próprio (selfRedescrições – Revista online do GT de Pragmatismo, ano VI, nº 1, 2015 [p. 86/105]