Revista Redescrições | Page 87

87 tal sujeito consigo mesmo. Contudo, no prosseguimento do raciocínio de Evans, a alucinação é imediatamente assimilada a um exemplo tipicamente ilustrador daquela teoria clássica da percepção: Pela mesma razão, parecerá correto, a uma pessoa que vê um graveto meio imerso n’água, dizer que realmente está confrontando algo torto.28 Poder-se-ia dizer de Evans o mesmo que Lacan disse pretendendo combater, em 1936, a teoria clínica nomeada de “psicologia associacionista”: “assimilando o fenômeno da alucinação à ordem sensorial, a psicologia associacionista tão só reproduz o alcance absolutamente mítico que a tradição filosófica conferia a esse fenômeno, na questão escolar sobre o erro dos sentidos”29. É curioso descobrir que tal concepção é idêntica à definição do fenômeno alucinatório para a medicina psiquiátrica do século XIX. Jean Étienne Dominique Esquirol, em 1838, definiu a alucinação como uma “sensação atualmente percebida, enquanto que nenhum objeto próprio a excitar esta sensação está ao alcance dos sentidos”, e em 1864, Jean-Pierre Falret cunha a frase que deveio clássica: a alucinação é uma “percepção sem objeto”30. O problema dessas definições é criarem a ficção de um sujeito alucinado separável de sua própria alucinação, como se esta fosse um instante breve de insanidade, falha da razão, ou desrazão, o que é profundamente insatisfatório do ponto de vista do tratamento de uma psicose. Evans, naturalmente, no único momento em que esboça uma preocupação terapêutica com o sujeito alucinado, só consegue sugerir como tratamento uma correção da sentença proferida pelo alucinado, em favor de sua adequação com a situação referencial: quando a intenção é direcionar a atenção dos pensamentos do audiente para alguma coisa de que o falante acha que também ele tem informação, nada além do objeto de que deriva a informação pode ser o referente desse uso do termo. Assim, se o falante está alucinando e profere uma sentença contendo um demonstrativo, “Este homem está prestes a nos atacar”, na crença de que sua audiência possa perceber a mesma pessoa, o demonstrativo está sem referente: a coisa certa a ser dita é: “Acalme-se: aquele homem não existe” – mesmo que, por acaso, aconteça de haver algum homem na direção geral indicada pelo falante. 31 28 (EVANS: 1982, p. 200). “Au-délà du ‘principe de réalité’” (Lacan, 1966, p. 77). 30 Extraídas do ótimo texto de Frédéric Pellion (2005, pp. 283-299), “Six notes à propos de l'hallucination verbale selon Jacques Lacan: un cas du dialogue psychanalyse/psychiatrie”. 31 (EVANS: 1982, p. 323). 29 Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano V, nº 3, 2014 [p. 77 a 89]