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distinta da habilidade de perceber, e se identificar com, a dor e a humilhação” 54. O
problema, claramente identificado por Rorty, é que a ética kantiana é estritamente
normativa-individualista, na qual os indivíduos são estritamente “seres racionais”
(vernünftige Wesen)55. Neste entender, o mesmo poderia ser dito sobre o direito: O
direito para Kant é um direito fundado na razão 56, isto é, um saber no qual indivíduos
calculam suas ações com base na autoridade da razão e sob uma lei universal.
Rorty oferece um outro sentido à “razão” habermasiana-kantiana. Para ele, se
nós “pararmos de pensar em razão como uma fonte de autoridade e pensarmos nela
simplesmente como um processo de alcançar acordo através da persuasão, então a
dicotomia padrão platônico-kantiana, razão versus sentimento, começa a desaparecer”
(RORTY, 1997, p. 146)57. Neste contexto, ser “racional” significaria “simplesmente
sugerir que, em algum lugar entre as crenças e os desejos que compartilhamos, podem
existir recursos suficientes que permitam um acordo a respeito de como coexistir sem
violência”. Para Rorty, se uma pessoa não parece compartilhar de maneira suficiente as
mesmas crenças e desejos que temos, no sentido de empreender possíveis conversações
conosco sobre questões que estariam em disputa, então ela poderia ser classificada ou
tida como “irracional”. Neste caso, como não podemos ampliar sua “identidade moral”,
justificar-se-ia a ameaça (ou o uso) da força (ibidem, p. 146). Neste caso, a ameaça ou
uso da força adviria da prática social do direito, que ofereceria um outro grau de
deliberação sobre conflitos sociais não solucionáveis pelos ajustes de rotinas advindas
dos costumes ou hábitos sociais (cf. RORTY, 1999, p. 73). A teia de crenças e desejos
individuais e comunais, “que sofrem impactos causais feitos pelo comportamento das
pessoas” (RORTY, 2007a, p. 144) explicaria o próprio modo de atuar o direito numa
dada sociedade.
54 “He made “morality” something distinct from the ability to notice, and identify with, pain and
humiliation.” (RORTY, 1989, p. 193). Cf. RORTY, 1999, p. 76.
55 Kant associa aos seres racionais “a vontade” (der Wille), cf. KANT, 1785, p. 63.
56 No entender de Kant, podemos definir o direito deste modo: “O direito é o conjunto de
condições sob as quais o arbítrio de um pode ser unido conjuntamente com o arbítrio de outro segundo
uma lei universal de liberdade.” (KANT, 1907, p. 230 [24-26]). A vontade é estritamente racional aqui,
não há voluntas em Kant com o sentido da boulêsis ou da prohairesis grega.
57 Em outro texto, Rorty explica a teoria que envolve a idéia iluminista de razão: “… the theory
that there is a relation between the ahistorical essence of the human soul and moral truth that ensures that
free and open discussion will produce ‘one right answer’ to moral as well as to scientific questions. Such
a theory guarantees that a moral belief that cannot be justified to the mass of mankind is ‘irrational’, and
thus is not really a product of our moral faculty at all.” (RORTY, 1990, p. 280).
Redescrições – Revista online do GT de Pragmatismo, ano V, nº 3, 2014 [p. 7 a 48]