Revista Redescrições | Page 23

23 oakeshottianos quanto gadamerianos (cf. RORTY, 1980, pp. 318 e ss.; pp. 357 e ss.; RORTY, 2000, pp. 122 e ss.), mas não se contenta com eles. Rorty compreende que a hermenêutica supera o confinamento epistemológico37 e entende que os âmbitos da epistemologia e da hermenêutica utilizam formas diferentes de discurso. Ele atesta que, por um lado, a epistemologia possui um “discurso normal”, que é conduzido dentro de um conjunto de convenções, acordadas por todos, sobre questões sobre o que conta como contribuição relevante, no que consiste em responder a uma questão, o que consiste em ter um bom argumento para tal resposta ou uma boa crítica a ela (RORTY, 1980, p. 320). Por outro lado, a hermenêutica teria um discurso chamado “anormal”, que ocorre quando alguém adere ao discurso e não quer saber das convenções ou, simplesmente, as deixa de lado (ibidem, p. 320). Na compreensão de Rorty, o discurso hermenêutico “anormal” (ou “existencial”, segundo uma perspectiva gadameriana) seria sempre parasita do discurso “normal” 38. Este é um ponto não percebido pela hermenêutica tradicional: A hermenêutica só é possível diante de um dado componente educacional, que implica em uma prévia aculturalização (acculturation) (RORTY, 1980, p. 365). No processo de educação (education, Bildung) deve ocorrer, segundo Rorty, uma transposição em vermos nós mesmos “en-soi”, antes de pensarmos em nos vermos “pour-soi”. O que ele quer dizer com isso? Primeiramente, enxergamos nós mesmos sob o aprendizado inevitável de narrativas cotidianas tradicionais, gerais e científicas geradas por nossa cultura, e apenas 37 Rorty separa bem as funções desses dois tipos de conhecimento. Primeiro, ele aponta o sentido da epistemologia: “A noção dominante de epistemologia é a de que para ser racional, para ser completamente humano, para fazer o que devemos, nós temos que estar aptos a encontrar concordância (acordos) com outros seres humanos. Construir uma epistemologia é encontrar a máxima quantidade de interesse comum com os outros” (RORTY, 1980, p. 316). Cf. RORTY, 1991a, p. 37. Depois ele apresenta sua falha: “Para epistemologia, ser racional é encontrar o conjunto correto de termos, nos quais todas as contribuições deverão ser traduzidas, se o fim é tornar possível a concordância.” Rorty esclarece então a diferença: “A epistemologia vê os participantes como unidos naquilo que Oakshott chama de uma universitas – um grupo unido por interesses mútuos na realização de um objetivo comum. A hermenêutica os vê como unidos naquilo que ele chama societas – pessoas cujos caminhos de vida coincidiram (have fallen together), unidos pelo civismo em vez de por um objetivo comum ou, menos ainda, por um interesse comum (common ground)” (RORTY, 1980, p. 318). 38 Essa é uma das questões que a atitude “existencialista” frente a objetividade e racionalidade, típica da hermenêutica de Gadamer, não percebeu. Cf. RORTY, 1980, p. 366. A representação ontológica da realidade também foge ao âmbito anti-essencialista de Rorty, o que o afastaria da concepção hermenêutica puramente heideggeriana e isso também na esfera do direito. Algo que, no âmbito do direito, oporia-se também a percepção de Lênio Streck, em que pese ser reconhecida a importância da abordagem filosófica essencialista da realidade à hermenêutica. Cf. STRECK, 2003, pp. 186-187. Redescrições – Revista online do GT de Pragmatismo, ano V, nº 3, 2014 [p. 7 a 48]