Revista Redescrições | Page 16

16 como ciência positiva, assume a tarefa de revelar a verdade de fatos ocorridos no passado, apresentados num processo judicial, e que serão fundamentalmente “objetos” de apreciação de advogados e juízes. Aqui o “fato jurídico” é descrição da “realidade externa” ocorrida. No entanto, tomando em termos o que Rorty expõe sobre o emprego dos termos “ciência” e a “filosofia”, podemos alcançar uma outra forma de configuração do emprego do termo “direito”. Não mais como ciência das normas ou como uma disciplina que almeja se tornar uma ciência rigorosa, naquele modo como Husserl pretendia fazer com a filosofia em geral, espelhando o modelo do método matemático (HUSSERL, 1987, pp. 2 e ss.), ou como Kelsen pretendia fazer no âmbito de uma ciência pura do direito, espelhando o modelo seguro de obediência restrita a norm as (KELSEN, 1976, pp. 1 e ss.). Em termos rortyanos, a ciência do direito, por mais que os cientistas do direito poderão desejar pensar ao contrário, muito dificilmente conseguirá expor a verdade da realidade externa ou objetiva nos autos de um processo. Primeiro, pela razão de que uma representação correta da realidade física externa (como “espelho da natureza” 20) nos autos de um processo é altamente questionável, especialmente nos parâmetros de crítica à epistemologia oferecidos por Rorty21. Segundo, há uma delimitação formal epistemológica à noção de realidade no direito, para a ciência do direito a realidade só lhe interessa se esta trazer consequências jurídicas, ou seja, se for um acontecimento 20 Seja no entendimento de uma verdade como correspondência ou como coerência. Aqui não pretendo adotar um ceticismo ou deflacionismo com relação a “verdade”, mas apontar uma falha epistêmica no desejo de se representar a realidade como ela é, sem enxergarmos nisso uma justificação implícita. Para Rorty, não há distinção a ser feita entre “verdade” e “justificação”, quando desejamos formular declarações verdadeiras de nossas declarações. Cf. ENGEL, 2007, p. 4. 21 Um dos parâmetros para o entendimento de uma correta representação da realidade seria a noção de que a simples existência de certas formas de representação da realidade significariam a própria realização futura dos fins de um processo. Explicando o parâmetro rortyano em termos jurídicos, os fatos jurídicos como elementos básicos presentes no processo judicial só poderão ser entendidos e “capturados” como tal se, e apenas se, anteriormente tivermos o conhecimento do sentido (da prática) do que é esse todo processual, onde esses elementos estão inseridos (ou são descritos). A descrição desses elementos só faz sentido nesse contexto, ou seja, a descrição dos fatos jurídicos advém de uma escolha dos elementos que é ditada pelo nosso entendimento da prática do processo judicial, isso mais do que o sentido de que o processo judicial seria legitimado pela reconstrução racional sem tais elementos. Os fatos jurídicos são como tais por que é esperado que um fato qualquer tenha determinadas características para que seja inserido num processo judicial. O todo do processo judicial e seu funcionamento só são ou serão compreensíveis se soubermos como foram descritos tais fatos. Este é o ponto do “círculo hermenêutico”, segundo Rorty: Para se entender as partes de um todo (cultura, prática, teoria, linguagem), devemos entender como o todo funciona, em que pese nós não podermos compreender como o todo funciona até nós termos algum entendimento das partes (RORTY, 1980, p. 319). Redescrições – Revista online do GT de Pragmatismo, ano V, nº 3, 2014 [p. 7 a 48]