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Sócrates sobre os seus juízes. Ele pode ser o cidadão exemplar de sua cidade e, ao
mesmo tempo, permanecer o monstruoso habitante de um mundo alternativo
(Gegenwelt13). Por esta razão, ele traz as palavras, ao final de seu discurso de defesa,
que iniciam formalmente a história da outra crença (Andersgläubigkeit). Ele, Sócrates,
não acredita nos deuses? “Atenienses, eu creio neles como nenhum outro dos meus
acusadores, e encarrego a vocês e ao deus de julgarem-me, da maneira que for melhor
pra mim e para vocês”14. Assim, com seu próprio esclarecimento, começa a impiedade
piedosa: acreditar como nenhum outro. Neste discurso final, manifesta-se a dissidência
como elemento no qual o modo citadino de ser sagaz está junto de si. Esta é a cena
primordial da modernidade. Com a violência, pela primeira vez, uma inteligência
(Intelligenz) esclarece algo de si mesmo. Ela aposta sua vida na imensidão aberta do
experimentar (Versuchen). Sim, ela assegura a seus ouvintes que a imensidão estava
também aberta para eles, caso fossem apenas com consciência o que são: cidadãos,
animais detentores da fala, mortais racionais, buscadores (Versuchende) de uma outra
vida, de uma vida pós-natural, de um existir (Dasein) meta-cósmico na luz acropolítica.
“Eu creio como nenhum outro nos meus acusadores”. A frase marca o momento crítico
na revolução mundial da alma (Seele). A crença, o avanço claro para o encoberto, para
de se basear na submissão. Ela se conecta à clara inquietação e a luz lógica da alma, que
não para de pensar. O que é a alma senão o interior da vida, que acordou no alarme
mundial (Weltalarm) da cidade? Certamente, o filósofo, o ex-xamã, o qual permanece
marcado pelas mais velhas consagrações, coloca no mundo, junto à outra crença
(Andersgläubigkeit), uma outra magia (ein Anderszaubern). Agora, deve a alma não
mais estar ligada à terra mãe e debruçada sob missões. O parto é a palavra fundamental
do outro tipo de magia (Anderszauber15), a diversão é o seu programa. O seu assunto
motriz consiste em investigar o número de acessos à felicidade e saídas de uma falsa
homens dispersos para uma vida em sociedade, tu ligaste primeiro um homem ao outro através dos locais
de residência, em seguida através de casamentos e então através da comunhão das letras e das vozes,...”
(“tu urbis peperisti, tu dissipatos homines in societatem vitae convocasti, tu eos inter primo domiciliis,
deinde coniugiis, tum littterarum et vocum communione iunxisti,...”). Tradução livre com base na edição
em latim: M. Tulli Ciceronis Tusculanae disputationes (ed. M. Pohlenz). Leipzig: Teubner, 1918, L. V, 5.
(N.T.)
13 “Gegenwelt” pode significar também “mundo contrário”. (N.T.)
14 Frase constante da Apologia de Sócrates, XXII, 35d-e. (N.T.)
15 “Anderszauber” significa “outra magia” ou “magia diferente”. (N.T.)
Redescrições – Revista online do GT de Pragmatismo, ano V, nº 3, 2014 [p. 115 a 124]