Revista LiteraLivre Revista LiteraLivre 9ª edição | Page 96

LiteraLivre nº 9 – Maio/Jun de 2018 O Incendiário Joaquim Bispo Lisboa - Portugal «Tudo menos troça!» Mauro pediu mais uma cerveja. Mantinha na retina a imagem da jovem em risinhos e a cochichar com as amigas, na véspera. É claro que era um falhado, toda a gente sabia isso, mas troça é que não. Para a menina do papá era muito fácil rir-se dele. Não tivera de passar pela experiência de dormir debaixo de um viaduto, na vila; não tinha de aceitar o trabalho que aparecesse, fosse ajudante de trolha, fosse ajudante de cargas, na serração. Com 19 anos, ele não tinha um telemóvel de jeito, não tinha carro, não tinha amigos, não tinha nada. Vivia com a mãe viúva, sempre com recomendações, que se esforçava, mas não lhe dava um mínimo para um rapaz dos tempos atuais. Às vezes, não lhe dava nem trocos para ir ao café. Ficava a ver televisão em casa, mundos magníficos tão diferentes da sua aldeia encravada entre montes cobertos de pinheiros e eucaliptos, revoltado com a sua vida sem futuro. Saiu do café e acendeu um cigarro. Caminhou na direção oposta da sua casa, ao longo da estrada iluminada por alguns candeeiros esparsos, que ladeava a pequena ribeira que atravessava Lage Fundeira, Passou em frente da vivenda de Carla. Imaginou-a em frente a um computador, a trocar piadas com amigas e amigos. Voltou a lembrar-se do riso dela. Um incómodo voltou a atravessá-lo. Prosseguiu até as casas acabarem e sentou-se numa pedra a ouvir a ribeira. Aquele enorme silêncio, em vez de o acalmar, trouxe-lhe uma visão clara do seu exílio. Só, abandonado, miserável, esmagado debaixo de toneladas de pasmaceira. Cheirou-lhe a fumo. Mais uma vez. Na véspera, o fogo andara numa serra não longe dali. Tinham lá estado os bombeiros e a televisão. Uma animação enorme. Se tivesse carro, tinha lá ido ver. Acendeu outro cigarro e observou o insinuante bruxulear da chama do isqueiro. Baixou a cabeça, pensativo. Quando os bombeiros chegaram, meia hora e tal depois, Mauro observava da janela de casa o fogo a alastrar pelo mato próximo da zona onde o incêndio tinha 91