Revista LiteraLivre Revista LiteraLivre 9ª edição | Page 83

LiteraLivre nº 9 – Maio/Jun de 2018 olvidar-se da ruína da mulher que um dia fora e vislumbrar uma guerreira a desbravar caminho. A cabeça do inspetor emergiu, precipitadamente, da porta do automóvel adquirido há poucos meses, e, sem uma palavra, uniram as mãos sobre o caminho enlameado. Vacilaram quando se aproximaram da campa de Catarina. Sentaram-se, em silêncio, e Masil pigarreou antes de começar a ler o conto preferido da filha dos dois inspetores: Era uma vez… Quando terminou de ler a história a Catarina, anoitecera e as estrelas pontilhavam o céu noturno de luzes dispersas. Arrefecera. João conduziu Masil para o apartamento secreto que partilhavam no Bairro Alto e observou-a a mudar de roupa e a esbater a maquilhagem. Ele também se transfigurara sob o olhar atento da Má da Silva, especialista em detetar a mínima dissonância. Afinal, havia uma missão a cumprir. Transfiguraram-se em animadores culturais voluntários de uma organização sem fins lucrativos. Sob esse disfarce, foram até a Serafina e bateram às portas das casas onde havia crianças com fome e frio, muitas delas molestadas. Sempre que podia, Masil narrava a história preferida da filha aos meninos e às meninas reféns daquele bairro sem sonhos. João entregava brinquedos e alimentos aos avós (decerto os pais e mães andavam no tráfico ou no consumo, e esses atos não respeitam dias festivos). Contar uma história era a única forma de honrar o natal das crianças que viviam uma realidade sem direito a infância. Na condição de inspetores, haviam congeminado este modo de manter a vigilância no bairro que seria sujeito a uma nova rusga no final de janeiro. https://www.facebook.com/saramarinatimoteo/ 78