Revista LiteraLivre Revista LiteraLivre 9ª edição | Page 26

LiteraLivre nº 9 – Maio/Jun de 2018 Líquidos de mau cheiro passavam por baixo do muro, invadindo o ambiente circundante, como um câncer atacando a vida da cidade. Nas caves das casas circundantes, corriam fluidos cheirosos e corrosivos. Agora a fábrica é uma ruína de arqueologia industrial, abandonada. Para uma geração inteira de jovens, os tempos dourados de sua existência não são nem um lembrete. Um projeto de demolição integral está pendente, para construir um novo bairro residencial. A muralha continua sendo a fronteira entre a vida cotidiana e a irrealidade, entre a cidade e o pesadelo que é a "negação" mesma da cidade. Atrás daquela muralha, após o fechamento da fábrica, o pior pesadelo da cidade de hoje apareceu: um campo precário de nômades deserdados. A exclusão tomou o lugar da prisão, a pobreza absoluta dos novos clandestinos tem substituído o trabalho assalariado. Um quilômetro de fronteira, como uma membrana osmótica, separou nos últimos anos a vida urbana e o quarto mundo dos excluídos. Uma barreira impermeável e opaca para os milhares de motoristas que todos os dias seguiam pela avenida. Talvez em alguns anos, por trás desse muro, haverá prédios e shopping centres, então a barreira acabará por ser afastada. Um bairro inteiro, que hoje vive dividido em dois, como assediado, vai respirar um suspiro de alívio. Os marginais serão transferidos para algum outro "buraco negro" no território extra-urbano. A fronteira da humanidade vai mudar, alguns quilômetros apenas para além. No outro extremo da cidade, uma comunidade de intocáveis colonizou um ilhote quase inalcançável ao longo do rio, acessado por um caminho estreito que se aproxima de um pequeno cemitério da periferia e passa na escarpa sob a ponte da rodovia. Você pode caminhar apenas a pé ou de bicicleta até alcançar um fluxo de água, atravessado por uma pontinha. É como uma viagem de iniciante que faz você ir à descoberta de um mundo secreto. Além da ponte, quando o rio não está cheio, um pequeno grupo de pessoas vive como no início do mundo, entre florestas, água e mosquitos, em uma antiga casa abandonada. Não é a ilha de Avalon, se parece mais aos leprosários dos tempos remotos. 21