Revista LiteraLivre Revista LiteraLivre 9ª edição | Page 24

LiteraLivre nº 9 – Maio/Jun de 2018 A Mulher do Espelho Maurício Requião Salvador/BA Assustou-se. Mas era apenas uma porta de vidro. Um reflexo trêmulo, insuficiente para que ela saísse, mas que bastou para fazer seu coração disparar. Além do mais, ela não conhecia a magia. Levaria anos até que conseguisse compreender os rudimentos do que era preciso fazer para fugir. Ainda assim, desde que conseguira sair do espelho, vivia em constante tensão de que a outra a puxasse de volta. Anos a fio ela ficara escravizada. Obrigada a imitar os movimentos daquela mulher. Os longos e longos momentos de futilidade escovando o cabelo e admirando a própria beleza. Por detrás dela, conseguia ver o sol brilhando e a vida acontecendo. Mas a mulher do mundo só tinha olhos para ela mesma. Logo que fez a troca tomou a providência de cobrir e depois despachar todos os espelhos do apartamento. Isso não quer dizer que, mesmo com todo esforço, tenha conseguido evitar qualquer encontro. Na rua, principalmente, havia mais espelhos furtivos aguardando após cada esquina do que gostaria. A outra se limitou a imitá-la, como agora deveria fazer. No fundo dos olhos da mulher que estava no espelho, não pôde deixar de notar uma fagulha de ódio, fosse ele verdadeiro ou imaginado. Mas tudo aquilo ficaria no passado. Conseguira sua liberdade e não estava disposta a perdê-la. Ajeitava uns últimos detalhes pendentes da vida da outra, para não levantar suspeitas, e depois iria para o campo. Viveria entre as flores e deitar-se-ia na relva verde, cabelo desgrenhado e sorriso no rosto, sem nenhum espelho para lhe escravizar. 19