LiteraLivre nº 3
Sapatos Limpos
“SCHLEIDEN” Nunes Pimenta
Campo Belo/MG
Algo tocou seus pés e foi o bastante para acordá-lo. Olhando para a rua,
notou os primeiros carros a cortar os sinais vermelhos da madrugada,
castigando o asfalto ainda gelado. Estava acostumado, todos os dias
eram assim. No entanto, sempre agradecia por ter onde morar, e por
mais um dia, e esses pensamentos ele nunca se esquecia de rezar.
Lavou o rosto e aprumou seu terno bem passado e cuidado, limpo de
maneira que em todas as manhãs parecia vestir um novo; os cabelos
sempre penteados e cortados, a barba um pouco grande – é verdade -,
mas porque gostava e não por desleixo só. Guardou a roupa com a qual
dormira e, observando a cidade que aos poucos despertava lá embaixo,
seguiu seu caminho para o trabalho. Era uma tarefa difícil, fazia-se
necessário que lidasse com muitas pessoas, de lugares diferentes, jeitos
e culturas diversas, e a sua argumentação e a sua técnica eram cruciais
para a efetivação dos negócios – talvez, não tão cruciais como o sorriso
que sempre deixava estampado no rosto ou a simpatia e a educação,
mas eram importantes também.
Teve de aprender seu ofício sem que ninguém o ensinasse, e, da
primeira vez em que procurou emprego, sofreu uma das mais terríveis
humilhações. Mas tudo é aprendizado debaixo desse céu, dizia ele.
Àquela altura da sua carreira colhia respeito, por onde caminhava era
cumprimentado, nos corredores recebiam-no com um tenro sorriso e os
chefes o adoravam. Ouviu tantas vezes a frase que o trabalho dignifica o
homem, e acreditava tanto nisso, que imaginou receber o fruto dos seus
esforços assim: trabalhando. Uma vez, um dos seus clientes perguntou
se apenas o trabalho dignifica o homem, pois, assim, aquele que por
ocasião de saúde não pode trabalhar não teria dignidade também!
Chegou à conclusão de que haveria outros modos de se alcançar essa tal
dignidade, mas o seu caminho seria o trabalho honesto e a dedicação, a
responsabilidade e a boa educação.
Aconteceu que, neste fatídico dia, envolto numa de suas conversas
filosóficas com algum cliente, perdeu por um momento o sorriso que
portava noite e dia – noite não, pois era hora de descansar -, e eis que
quando tal sujeito pisou em seu campo de labuta, nosso trabalhador
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