Revista LiteraLivre 3ª edição | Page 115

LiteraLivre nº 3 Sapatos Limpos “SCHLEIDEN” Nunes Pimenta Campo Belo/MG Algo tocou seus pés e foi o bastante para acordá-lo. Olhando para a rua, notou os primeiros carros a cortar os sinais vermelhos da madrugada, castigando o asfalto ainda gelado. Estava acostumado, todos os dias eram assim. No entanto, sempre agradecia por ter onde morar, e por mais um dia, e esses pensamentos ele nunca se esquecia de rezar. Lavou o rosto e aprumou seu terno bem passado e cuidado, limpo de maneira que em todas as manhãs parecia vestir um novo; os cabelos sempre penteados e cortados, a barba um pouco grande – é verdade -, mas porque gostava e não por desleixo só. Guardou a roupa com a qual dormira e, observando a cidade que aos poucos despertava lá embaixo, seguiu seu caminho para o trabalho. Era uma tarefa difícil, fazia-se necessário que lidasse com muitas pessoas, de lugares diferentes, jeitos e culturas diversas, e a sua argumentação e a sua técnica eram cruciais para a efetivação dos negócios – talvez, não tão cruciais como o sorriso que sempre deixava estampado no rosto ou a simpatia e a educação, mas eram importantes também. Teve de aprender seu ofício sem que ninguém o ensinasse, e, da primeira vez em que procurou emprego, sofreu uma das mais terríveis humilhações. Mas tudo é aprendizado debaixo desse céu, dizia ele. Àquela altura da sua carreira colhia respeito, por onde caminhava era cumprimentado, nos corredores recebiam-no com um tenro sorriso e os chefes o adoravam. Ouviu tantas vezes a frase que o trabalho dignifica o homem, e acreditava tanto nisso, que imaginou receber o fruto dos seus esforços assim: trabalhando. Uma vez, um dos seus clientes perguntou se apenas o trabalho dignifica o homem, pois, assim, aquele que por ocasião de saúde não pode trabalhar não teria dignidade também! Chegou à conclusão de que haveria outros modos de se alcançar essa tal dignidade, mas o seu caminho seria o trabalho honesto e a dedicação, a responsabilidade e a boa educação. Aconteceu que, neste fatídico dia, envolto numa de suas conversas filosóficas com algum cliente, perdeu por um momento o sorriso que portava noite e dia – noite não, pois era hora de descansar -, e eis que quando tal sujeito pisou em seu campo de labuta, nosso trabalhador 109