Relatório da Comissão de Direitos Humanos da Alerj - 2015 | Page 97

96 | RELATÓRIO DA COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA DA ALERJ | 2015 sionados, quase todos pertencem a um mesmo grupo de condenados à vida: jovens negros, pobres e moradores da periferia. Basicamente. Significa dizer que há uma guerra sendo travada no tumbeiro; interminável, como no mundo descrito por Orwell, porque "[...] travada, pelos grupos dominantes, contra os seus próprios súditos, e o seu objetivo não é conquistar territórios [...], porém manter intacta a estrutura da sociedade".12 No século XIX, a visão dos horrores de um navio negreiro fez Castro Alves designar por irrisão o cenário medonho. "Dizei-me senhor Deus dos desgraçados, se eu deliro ou se é verdade, tanto horror perante os céus"13. A violência extrema confunde a racionalidade. No Brasil do século XXI a razão parece insensível ao massacre. Tal como faziam os donos do poder em Oceania, poderíamos adotar o dístico Irracionalidade é razão, a fim de justificar o nosso pouco caso para com os indicadores criminais; indiferença de mendigos fartos, no dizer do autor de Os Sertões a propósito de Canudos, aquela matança que inaugura a nossa experiência republicana. Consciências coisificadas. Embrutecidas. Séculos de escravidão, de torturas, de desrespeito pela condição humana, nos tornaram insensíveis à dor daqueles que consideramos inferiores. E nós policiais militares, somos considerados tão inferiores quanto aqueles contra os quais nos arremessam. Recrutados nos mesmos estratos sociais, seriamos a ralé do sistema de justiça criminal se isso existisse. Como o Brasil ainda não se deu ao trabalho de instituir um sistema de justiça criminal, a sua Polícia Militar é tratada como uma força que se conjura quando necessário, mais ou menos como uma fera indesejada e incômoda solta no quintal para a proteção dos donos da casa. A Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro é uma instituição com graves problemas. Guerra demais e política de menos resultaram numa instituição em ruínas. Suas dificuldades são inúmeras. Complexas. Estendem-se de marcos regulatórios anacrônicos a um ineficiente modelo de governança. Em pleno século XXI, apresenta deficiências tecnológicas básicas que a impedem de desenvolver mecanismos adequados de controle, apesar de toda a modorrenta cantilena acerca da inteligência policial. Seus homens e mulheres se encontram submetidos, há mais de trinta anos, a um regime de trabalho afetado pela proximidade da morte como risco racional. Uma corporação mobilizada permanentemente para o embate, como a Oceania do romance, com todas as consequências produzidas pela tensão ética implícita na raiva existencial do inimigo. 12. ORWELL, George. 1984. Op. Cit., p. 192. 13. ALVES, Castro. Navio Negreiro. In: Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986, p. 283. O moinho de gastar gente é impiedoso. Matamos muito e morremos aos borbotões, numa guerra à toa.