Relatório anual da Comissão de Direitos Humanos da Alerj - 2014 | Page 41

culturais da favela, a política de pacificação do Rio de Janeiro demonstra o quanto ignora a dinâmica comunitária, mesmo antes da implantação definitiva de uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) na Maré. Essa política se baseia na gestão autoritária do espaço favelado, dada à imposição do “Nada opor”, documento redigido pela Coordenadoria de Polícia Pacificadora que busca “criar uma norma para organizar e envolver o maior número de órgãos governamentais na elaboração dos atestados de ‘Nada opor’ para eventos culturais em locais públicos ou privados dentro dos limites da comunidade”. Desse modo, as forças de pacificação militarizada, além de vigiar e punir como prevê Michel Foucault, se qualificam como agentes culturais. São as corporações militares que se encarregam de gerenciar a cultura, como outrora o fez a ditadura militar, ao deslegitimar e achacar a autonomia comunitária. Percebe-se empiricamente que as ruas da Maré se revelam como o espaço privilegiado do ser comunitário e cultural. João do Rio foi enfático ao caracterizar a alma das ruas cariocas, porque reconhecia sua configuração como o espaço das trocas reais e simbólicas. Nas ruas da comunidade há uma linguagem muito específica, manifestada pela reprodução insistente das composições de funk, que muitos qualificam como gíria, mas os Racionais Mc’s insistem em lembrar: “Gíria, não, dialeto”. Assim, nota-se que a rua e o funk se consolidam como referência na rotina cultural da favela. Tanto que, aos fins de semana, a rua torna-se local de lazer, é nela que os espaços público e privado se confundem. Daí a dificuldade de um Estado ordenador e impositor de regras rígidas dialogar com as múltiplas linguagens. Na Maré, assim como em outras favelas do Rio, as festas particulares tomam as ruas, que geralmente são fechadas com enormes caixas de som, e o repertório é dominado quase que exclusivamente pelo funk. Entretanto, sua ocupação pelas Forças Armadas recrimina essa prática dos bailes funks e das festas particulares. A realização de bailes funks foi expressamente proibida, e as festas particulares devem ser precedidas de autorização das forças de pacificação, que estavam previstas para se retirarem após as eleições, mas o prazo estendeu-se para o final de dezembro de 2014. Enquanto isso, a rotina de arbitrariedades cometidas pelo Exército cresce incessantemente. Morador que faz da rua a extensão de sua casa para 40 festas particulares é abordado de maneira violenta e autoritária, o que gera conflito direto, com agressões corporais entre moradores e militares. Por mais que o funk tenha sido reconhecido por força de lei, em 2009 por conta de um projeto de Marcelo Freixo, como uma expressão cultural, a abordagem truculenta revela a velha prática de criminalização do funk e dos funkeiros que residem em favelas. Trata-se de um discurso articulado historicamente pelos órgãos de Segurança Pública e endossado pela mídia tradicional. As inúmeras manchetes de jornais da década de 90 são reveladoras: “Funkeiros apedrejam ônibus e ferem 3” (O Globo, 10/08/1993), “Funk Carioca: de James Brown ao Comando Vermelho” (O Dia, 23/03/1994), “Juiz manda apurar apologia ao tráfico nos bailes funk” (O Globo, 11/06/1995), “Rap é a nova arma do Comando Vermelho” (O Globo, 11/06/1995), “Febre Funk já matou 80” (O Dia, 12/09/1996). Essas narrativas discursivas impuseram o funk como bode expiatório das mazelas da sociedade, por isso, a solução imediata dos órgãos públicos sempre apelou para sua proibição. Não há como negar que o funk é uma experiência extremamente comunitária, já que muitas de suas composições revelam o cotidiano de alegrias, frustrações, privações, opressões vivenciadas em comum por moradores de favelas. A nossa aposta é a de que, neste universo complexo, a rua pode se configurar como o espaço em que este vínculo comunitário se realiza em seu maior grau de organicidade. A rua, que na favela torna-se extensão das casas das pessoas, se configura como o desordenamento físico do espaço que o Estado quer ordenar. Por isso, uma das primeiras ações da política de pacificação nestes locais é a alteração da vida cotidiana. Ao estabelecer toques de recolher e/ou impondo regras para a realização de festas, se reduz o espaço de socialização. Mas, mesmo diante das adversidades, as pessoas continuam ocupando as ruas das favelas da Maré com encontros festivos. E, assim como Stuart Hall, somos otimistas ao acreditarmos que é na cultura popular que se encontra um ambiente fértil para se constituir o ser social orgânico. Uma vez que a cultura popular se potencializa, passa também a disputar novas narrativas e discursos. É sabido, entretanto, que a fabricação do discurso, de acordo com Michel Foucault (2012), obedece uma série de procedimen-