Relatório anual da Comissão de Direitos Humanos da Alerj - 2014 | Page 16

As jornadas de junho e o Estado de exceção: legado autoritário da FIFA ou permanência histórica? Por Fernanda Vieira1 O ano de 2013 marcou nossas histórias pela capacidade de nos apontar possibilidades de retomada das ruas em nome de mudanças necessárias na cidade e no campo, com movimentos massivos em luta por mais saúde, educação, transporte, enfim, reivindicações clássicas na busca pela efetivação da democracia, logo, do acesso aos direitos fundamentais. A resposta estatal, seja municipal, estadual ou federal, acabou por reproduzir a mesma postura historicamente conhecida: um processo brutal de repressão e violência contra os manifestantes que lutavam por seus direitos. De fato, o que se observou foi uma ação coordenada entre os poderes (executivos, legislativos e judiciários) com o apoio necessário da mídia conservadora, na sedimentação do imaginário social de que ali se encontravam vândalos e não movimentos legítimos de reivindicação diante da imposição de um modelo de desenvolvimento que gesta uma cidade livre para o capital e a interditada para os trabalhadores, uma cidade de exceção. Há que se reconhecer que o estabelecimento de uma cidade de exceção não é propriamente um fenômeno novo, faz parte do desenvolvimento do capitalismo a adoção de lógica de exceção como forma de sedimentação e garantia dos seus interesses econômicos. No entanto, o que se percebe contemporaneamente é a escala global de tal fenômeno, interpretado pelo filósofo italiano Giorgio Agamben como a sedimentação de um Estado de exceção2, o que para outros autores se configuraria em um Estado Penal, conforme Loic Wacquant. O que caracteriza o atual estágio do capitalismo de cunho neoliberal é a escala global das medidas de controle social, ampliandose as ações no campo penal, com rupturas com as garantias fundamentais trazidas nos textos constitucionais, sem que haja necessidade de desmonte das estruturas de representação, como parlamentos, ou mesmo o estabelecimento de um Estado totalitário, não sem razão David Harvey denomina tal período como sendo das "democracias totalitárias". Os exemplos que se ampliam a partir de 11 de setembro são cada vez mais visíveis: Guantánamo e Abu Ghraib, modelos inquisitoriais de prisão, tendo a tortura legitimada como método de interrogatório; a adoção da diretiva de retorno pela União Europeia contra o imigrante indocumentado (geralmente negro e árabe) que permite a detenção sem processo por quase dois anos com a deportação e proibição de entrada no território dos Estados membros são demonstrativos de que a hegemonia do direito penal do inimigo parece ter encontrado um terreno fértil para sua execução3. No Br asil, não tem sido diferente. Se nossos inimigos ainda não são vistos como terroristas, o tratamento penal que lhes é imposto os alça a esse encargo, vide o Complexo Penitenciário de Pedrinhas. Portanto, podemos extrair a partir das jornadas a sedimentação do Estado de exceção 1. Advogada, Professora da Universidade Federal de Juiz de Fora e integrante da entidade Mariana Crioula. 2. Para Agamben o estado de exceção se apresenta cada vez mais como uma regra em nossa vida, tendo por pressuposto a flexibilização das garantias constitucionais pelo intérprete judicial, gestando em determinados campos, territórios, a possibilidade de sobrestamento do direito. As ações das UPPs nas favelas cariocas parecem explicar com perfeição a concepção do autor acerca da sedimentação de um estado de exceção. 3. Não é pouco significativo que os discursos dos candidatos a deputado estadual de múltiplos partidos apresentavam como plataforma a redução da idade penal, ainda que não tivessem competência para a matéria, demonstrando o quão o discurso punitivo seduz ainda que de forma irracional e alienada. 15