Pathos: revista brasileira de práticas públicas e psicopatologia | Page 52

Até que um dia, depois do meu horário de expediente, no caminho para o metrô, estiquei o olhar para ver se eu a encontrava, e reparei uma movimentação de umas pessoas em volta da cadeira dela, resolvi ir até lá para ver o que estava acontecendo, quando eu cheguei no local, Rosa estava suando, gemendo, e com fezes em sua roupa.

- Rosa!

- Você conhece ela? Os munícipes me perguntaram.

- Sim, eu a conheço...

Olhei para Rosa e pouco encontrei dela naquele olhar, corri para pegar água, guardanapo, enquanto o SAMU não chegava, nesse meio tempo liguei para o meu supervisor para avisar o que estava acontecendo, e ele me disse que o meu horário de trabalho já tinha terminado, e que eu estava livre para decidir se eu acompanharia ou não.

O SAMU demorou mais de uma hora para chegar ao local, eu dei água e sequei o suor que escorria do rosto dela, ela murmurava mandando embora as pessoas que estavam em volta dela, eu tentei acalmá-la, até que o SAMU chegou, e disse que não poderia levar as coisas dela na ambulância, eu insisti, e ajudei a fechar a cadeira de rodas e peguei as sacolas que ficavam atrás da cadeira. Para eles, tudo isso não passava de entulhos, e para Rosa era tudo o que ela tinha, tudo o que poderia chamar de seu.

Enquanto colocavam Rosa na ambulância, eu me questionava em que lugar termina o profissional e começa o vínculo pessoal, mas o momento não permitia muitas reflexões, então decidi fazer o que eu estava sentindo, o que para mim naquele momento seria correto do ponto de vista ético e humano. Sendo assim, entrei na ambulância com a Rosa e a acompanhei até o hospital.

Quando chegamos uma enfermeira carrancuda nos recebeu, e a colocaram em uma maca no corredor do hospital, na minha conversa com a enfermeira eu disse o nome da Rosa, algumas das informações que eu sabia sobre ela, e disse que ela estava há muito tempo no mesmo local e era querida pelas pessoas do bairro, nesse momento a enfermeira me disse em um tom debochado enquanto erguia o lençol que cobria a perna amputada e o pé necrosado da Rosa, que não entendia como uma pessoa querida podia chegar naquele estado sem que alguém tivesse intervindo... Irritada, pela leitura recortada da enfermeira, me peguei tentando explicar o que havia ocorrido, dizendo que Rosa não queria ir para Hospital antes e que nós estávamos respeitando a vontade dela, a enfermeira continuou e disse, que uma pessoa naquelas condições não tinha que escolher, não possui direito em optar... Nesse momento eu me vi em um lugar estranho, incômodo, um lugar que nunca havia ocupado, um lugar não humano, não cidadão, permeado pelo desrespeito e por aquilo que entendi como negligência ética.

Depois de algum tempo de conversa consegui que a enfermeira pelo menos etiquetasse as sacolas e a cadeira da Rosa, com o cuidado de não se perderem, mas logo depois de alguns minutos essa mesma enfermeira começou falar com Rosa a chamando de Dona Maria, eu fiquei olhando e me perguntei em que parte ela não entendeu que o nome dela era Rosa e não Dona Maria, e a corrigi, mas logo ela voltou a chamá-la de Dona Maria. Percebi que não havia espaço naquele lugar para a singularidade de Rosa, percebi que se perderia em meio a tantas Marias, percebi que o sistema não permitia a enfermeira tal olhar... Culpa dela? No momento achei que sim, mas depois percebi que ela era apenas um pedaço do não olhar para Rosa.

PATHOS / V. 01, n.01, 2015 51