Pathos: revista brasileira de práticas públicas e psicopatologia | Page 48

Esse é um relato, a partir de uma vivência de trabalho na abordagem/atendimento de pessoas em situação de rua da região sul da cidade de São Paulo. O intuito foi gerar uma tentativa de auto-avaliar as práticas cotidianas desta área e o relacionamento da Rede Socioassistencial do Município de São Paulo.

Relato de Caso

São Paulo, uma cidade com aproximadamente 11,32 milhões habitantes (IBGE), sendo 14.478 mil (segundo senso de 2011 da Prefeitura de São Paulo) pessoas em situação de rua, todos aparentemente na mesma situação, mas, cada um por um motivo único e singular. E lá vou eu, no meu primeiro mês de trabalho, com entusiasmo de conhecer, ouvir cada uma das histórias dessas pessoas que estão entre a vulnerabilidade e a quebra das ditas “normas sociais”.

Entre o vai e vêm de carros, pessoas, buzinas, poluição e embaixo do sol de agosto, lá estava ela, sentada com uma postura invejável, pernas cruzadas, unhas feitas, um lenço no cabelo e um olhar que me parecia uma mistura de onipotência com doçura, a princípio foi essa a minha visão, até que eu resolvi me aproximar:

- Bom dia! Posso conversar um pouquinho com você?

- O que você quer, quer me encher o saco?

- Não, eu só quero te conhecer e saber como a senhora está!

- Vai cuidar da sua vida! Você não esta vendo que eu estou na minha casa? (Nesse momento olhei em volta, não vi nada, além de uma cadeira de rodas que por sinal estava com as rodas quebradas, na qual ela estava sentada, algumas sacolas penduradas na parte de trás da cadeira, um poste, uma perfumaria na frente e um prédio comercial ao lado)

Então, inquieta e sem entender perguntei:

- Mas desculpa onde é sua casa?

E senhora apontou imediatamente para o prédio comercial. E me disse:

- Você tá se fazendo de desentendida agora? Vai dizer que você não sabe que eu moro ali? Você ta envolvida com as pessoas que querem tirar a minha casa de mim!

- Me desculpe senhora, não sabia! Mas como a senhora se chama?

- Beth Carvalho!

Beth Carvalho, para todos da Instituição na qual eu trabalho é Rosa , uma senhora negra de mais ou menos 56 anos que sobrevive nas ruas com uma perna amputada, o outro pé gangrenando, com um quadro psicótico, família desconhecida e nunca aceitou qualquer tipo de serviço social oferecido pela instituição e demais serviços da região. A maioria dessas informações sobre ela foram passadas por um antigo companheiro, também morador de rua que faleceu anos atrás.

E os dias passaram, senti uma singela simpatia pela Rosa, a explicação disso, está na sua forma de enfrentar as mazelas da vida. Várias vezes na semana, passei a atendê-la, ora sozinha ora com algum colega de trabalho, alguma das vezes ela me ignorava, outras me tratava mal, e mandava eu ir embora, dizendo que não precisava de nada.

Até que um dia eu passei e elogiei a cor do esmalte que ela estava usando e ela me surpreendeu me agradecendo, nesse dia eu enxerguei uma possibilidade de aproximação, e mostrei as minhas unhas dizendo que precisavam ser pintadas ela olhou, não disse nada e ascendeu um cigarro. Então perguntei a ela:

- Rosa, como a senhora faz para mudar de lugar quando chove?

Ela murmurou:

- Rosa, o que? Meu nome é Beth Carvalho!

Nesse momento, decidi aceitar o convite dela e entrar nesse mundo, no mundo dela, mesmo sem saber ao certo o que me esperava!

- Verdade, a senhora é a Beth Carvalho? A senhora canta também? Canta um pouco para mim?

- Não quero cantar, vai embora, você não desiste menina? Deveria ter vergonha de encher o saco dos outros! Você tá me atrapalhando, eu não vou na sua casa te encher o saco!

- Mas então porque a senhora dorme aqui fora, porque não entra na sua casa?(Estávamos na frente do portão do prédio comercial que ela dizia ser a casa dela, por volta das 21h e o prédio já estava vazio).

- Agora você não sabe, agora você é a Santinha do Roque Santeiro? Seus parentes estão lá dentro e não me deixam entrar!

PATHOS / V. 01, n.01, 2015 47