Pathos: revista brasileira de práticas públicas e psicopatologia | Page 40

8 iMagazine / April, 2013

O CAMPO DAS PRÁTICAS FORMATIVAS

Se a finalidade da formação em questão é a transformação das práticas de trabalho dos participantes, é justamente a partir das práticas que se iniciam os encontros. Mesmo em um encontro que tenha tema definido e objetivo específico, uma organização iniciada pelos participantes é essencial para que se crie um trajeto singular daquele grupo pelos conteúdos e que possa fazer sentido para suas vidas e trabalhos. Assim, os processos começam com o compartilhamento de expectativas e intenções em relação do que será produzido. Uma horizontalidade se estabelece com a abertura da fala para todos os presentes, que podem então trazer as bases para que o trabalho seguinte se estruture.

Em geral, no primeiro momento, os participantes relatam desgastes e limites do trabalho, especialmente os obstáculos para a articulação em rede e entre trabalhadores de campos diferentes de conhecimento/práticas; além de um desgaste por sobrecarga e pelo constrangimento de se verem cobrados por algo que não se consideram capazes de realizar. As expectativas apresentam-se na forma de demandas por conhecimento técnico: métodos e procedimentos para responder às demandas do trabalho e por formas de enfrentar moralismo, preconceito e crenças que limitam o diálogo e a possibilidade de desenvolver as práticas em RD.

A partir dessas expectativas, um aprofundamento das estruturas determinantes dos processos de trabalho se mostra necessária, de modo que seja possível localizar as responsabilidades dos agentes e as finalidades do trabalho em saúde (aspectos que parecem se misturar com as finalidades gerenciais de produção de indicadores de eficiência). É possível observar, em minha experiência, que os trabalhadores têm sido chamados a atuar de forma pouco crítica, mais procedimental, que tente responder aos ataques e cobranças da opinião pública sobre o que a mídia e alguns equivocados profissionais de saúde chamaram de “epidemia do crack” 4.

Para realizar esse aprofundamento, tem sido importante a apresentação de diretrizes das políticas estatais em seu processo de constituição histórica, considerando-se os interesses e forças em disputa que precedem e acompanham a elaboração e implementação dessas políticas. Nesse processo, os participantes dos encontros são capazes de relativizar algumas práticas cristalizadas sob a justificativa da “lei” que consideravam estar sobre si, ao poderem se apropriar dos documentos oficiais realizando a própria leitura deles, revendo interpretações e colocando em questão suas práticas.

Entender o contexto de privatização do setor da saúde também se mostra fortalecedor aos participantes dos encontros. Existe uma lógica empresarial adotada pelas instituições que têm gerenciado e/ou organizado o trabalho nas unidades de saúde de São Paulo (Bravo, 2014). O foco na produção de indicadores de eficiência apartados do real impacto das práticas sobre a saúde da população e a constante ameaça de demissão (dada em parte pela fragilidade dos contratos), são dois dos principais elementos manifestos como desgastantes no gerenciamento do processo de trabalho (ambos produzindo nos trabalhadores sentimentos de frustração e impotência frente à sobrecarga de trabalho, com baixo reconhecimento das suas potências singulares que são pouco registradas nos dados oficiais). Ao conhecer as diretrizes das políticas estatais, e entender o processo de privatização e os contratos das empresas com o poder público, parte da frustração e da impotência desses trabalhadores se desfaz – eles podem rever a sua real responsabilidade e dialogar de forma mais afirmativa com os gestores dos serviços.

A ampliação do olhar dos trabalhadores sobre a conjuntura em que executam suas práticas está constantemente associada ao aprofundamento dos aspectos conceitual e técnico do trabalho. Por exemplo: para discutir as políticas focadas no consumo de crack, é importante rever o conceito de epidemia, tão alardeado e descobrir que ele não se aplica à realidade do consumo de crack no Brasil. Para discutir os obstáculos na circulação das pessoas atendidas pela rede, é importante rever as portarias dos CAPS AD e descobrir que as restrições que alguns deles colocam ao atendimento não têm fundamento legal.

PATHOS / V. 01, n.01, 2015 39