Pathos: revista brasileira de práticas públicas e psicopatologia | Page 27

iMagazine / April, 2013 9

Quando iniciei o meu trabalho, de imediato fui informada das dificuldades de entendimento entre o abrigo e as escolas que os acolhidos institucionais estudavam, e de que naquele momento, não havia ninguém no abrigo, apesar das tentativas, que estivesse conseguindo dar conta de todas as demandas que surgiam. Não conseguiam dialogar, não havia entendimento entre as partes para resolução de conflitos ali postos por ambas as instituições. A linguagem de cada uma era incompreensível para a outra, cada uma delas com sua verdade e justificativas para atacar a outra.

Embora eu tenha trabalhado com as escolas de educação infantil e ensino fundamental I, vou deter-me na escola de ensino fundamental II, dos adolescentes. De posse das informações do caos instaurado, fui visitar a referida escola. Neste universo escolar percebi que o desconhecimento que se aplica à grande parcela da população quanto ao que significa, ou o que é o acolhimento institucional, também se aplicava à escola.

O quadro que encontrei foi o de professores desestimulados, desmotivados, desanimados e descrentes com a maioria daqueles adolescentes com os quais trabalhavam, uma visão determinista em alguns deles, em relação àqueles jovens. Logo me dei conta de que a escola necessitava ser ouvida. Por isso a escuta, sem críticas e julgamentos, naquele momento, foi de fundamental importância para os trabalhos que pudemos realizar posteriormente. Na minha concepção, a escola também estava órfã, assim como os abrigos se sentem muitas vezes, quando setores governamentais os abandonam à própria sorte.

Os adolescentes por sua vez, sentiam o mesmo desestímulo, desmotivação, desânimo e descrença pela escola. Reagiam a ela com comportamentos socialmente inaceitáveis: agressões verbais, ameaças de agressões físicas para os professores, chegando a vias de fato com outros alunos, tumulto na sala de aula, como também na escola toda, e até mesmo fuga, pulando o portão. Se não tinham status pelo saber, tinham pela fama de abrigados, com os estigmas desse "título", e pela indisciplina que praticavam. Para a maioria deles a escola não era vista como redentora. Estudar não era importante, a visão era a de que seriam quaisquer coisas ou teriam profissões as quais eles consideravam desvalorizadas, logo, não precisariam estudar. E quem se arriscava a dizer que seria bandido, então, não precisaria mesmo.

Os primeiros encontros na escola foi puro desabafo por parte desta, e isto foi muito bom, este despejar das situações-problema pelos agentes escolares, além de serem estimulados a nomear sentimentos, afetos de amor ou de ódio, deixar aflorar emoções, creio que deve ter funcionado como uma catarse, abrindo-me possibilidades de melhor compreensão do interlocutor, promovendo caminhos para processos interventivos na condução dos diálogos.

Os desabafos não se restringiam apenas às questões relacionadas aos nossos adolescentes, mas também aos problemas que a escola enfrentava no seu cotidiano, com sua população escolar, chegavam a assumir que outros adolescentes eram até mais “problemáticos” (sic). A diferença gritante era a de que esses adolescentes, ditos problemáticos, vinham com o "pacote" chamado família e a sua dita “desestruturação” (sic). Os nossos, com os seus direitos já violados e denunciados, moravam no abrigo, longe de suas famílias, esses outros, adolescentes em potencial para serem também acolhidos institucionalmente.

Diante de tantas situações que se apresentavam, escutar exigiu de mim estar totalmente entregue àqueles momentos em que a escola precisava desabafar: boa vontade, muita paciência, conter a minha ansiedade, despir-me de vaidades, como por exemplo achar que eu era a dona da verdade ou onipotente, onipresente ou onisciente para resolver toda a conjuntura dos dramas conflituosos e dolorosos que surgiam. Mas acima de tudo, exigiu de mim buscar o equilíbrio emocional necessário para todos os enfrentamentos, além de reafirmar com firmeza e certeza o meu papel como pedagoga e os objetivos que queria alcançar em parceria com a escola: promover a aprendizagem daqueles adolescentes a partir da conscientização da importância da escola em suas vidas, especialmente quando não mais estivessem sob a tutela do abrigo. E talvez, na tutela de ninguém.

PATHOS / V. 01, n.01, 2015 26