Pathos: revista brasileira de práticas públicas e psicopatologia 5º Volume | Page 12

Hoje a lua cheia está em escorpião. Da agudo. Durante a manhã a nossa sala de ensaio foi invadida pelos sons dos helicópteros. Sentíamos que o pior devia estar começando no fluxo. O Doria começou o extermínio dos usuários de crack debaixo dos nossos olhos. Eugenia e fascismo sempre andaram lado a lado. Não há mais meias verdades. Está estampado. Serão mortos. Um tanto a cada dia. Hoje foram uns.

Ontem a Rede Globo pautou uma matéria que só legitimava a ação que, aqui, estávamos esperando desde janeiro, e que a "Craco" Resiste está de plantão na cracolândia para garantir os direitos dessa comunidade e protegê-la.

Pela manhã todo o ensaio foi carregado de uma energia que nos atravessa num lugar muito sensível. Tudo estranho. Tudo atrapalhado. Na segunda parte do ensaio, estávamos na sala de cima fazendo análise de texto, quando barulhos de bombas e vozes de socorro encheram a nossa inspiração. Ficou difícil respirar. Vamos pras janelas. No meio da Rua do Triunfo, na quadra onde o cinema imperava em outros tempos, eram as viaturas da polícia que vinham na contramão. Na esquina da Gusmões um grupo de usuários era atingido por bombas. Logo a fumaça tomou conta de toda a nossa quadra. Trabalhadores, moradores e usuários de crack correndo pra todo lugar. Se escondendo pelas portas que eram encerradas. No largo as gangorras ainda estavam em movimento. Pouco antes a praça estava cheia de crianças. Em frente ao pensionado de idosos, que fica colado ao Teatro, a cena era ainda mais pavorosa. Um senhor tentava colocar a chave na porta quando passou pela sua cabeça uma bomba que caiu ao seu lado, mais uma e outra. Grito pra ele entrar. Nesse instante temos que fechar todas as janelas e portas, pois o gás de pimenta entra em todo o teatro. Pela primeira vez, fechamos todas as nossas portas e interrompemos os nossos trabalhos. Nos abraços, choramos. Todos em pânico. Nunca antes tinha vivido as cenas de uma ditadura. Não é mais somente um golpe, vivemos uma ditadura, um clima de guerra. Gritos. Bombas. Helicópteros, viaturas, cavalarias.

Vou até o fluxo pra ver o que aconteceu. A cena é Guernica. No meio a fumaça do fogo, que queimou barracas, um homem é retirado com a perna quebrada. Escuto que alguém morreu. Não sei quantos. Alguém lamenta a morte de seus gatos queimados dentro da barraca.

Σ

PATHOS / V. 05, n.03, 2017 11