Pathos: revista brasileira de práticas públicas e psicopatologia 3º Volume | Page 21

A relação com e entre os alunos mostrou-se fundamental para a realização do curso. Havia espaço de fala, escuta, acolhimento e encaminhamento das queixas oriundas do dia a dia de trabalho. Assim, trabalhar a temática das drogas, trazer a “novidade” da perspectiva da Redução de Danos, só foi possível na medida em que esses temas estiveram sempre articulados com as questões trazidas pelos próprios alunos-trabalhadores. Muitas vezes o discurso dos ACS e Enfermeiros era marcado pela insuficiência ou impotência. Falas como: “mas eu só fiz isso” ou "eu só pude fazer isso", eram geralmente marcadas pela sombra fantasmática da abstinência, da internação e da tradicional expectativa na área da saúde em termos de um furor curandis.

O “empoderamento”, como se diz atualmente, dos trabalhadores mostrou-se fundamental para abordarmos o tema. Vale ressaltar, no entanto, que o curso transcendeu para domínios distantes de sua proposta inicial. Esse é mais um aspecto que pode ser visto como positivo nesse percurso. Foi fundamental poder tocar no tema da insuficiência ou impotência sentida e vivida pelos trabalhadores, uma vez que restringir-se a essa posição queixosa torna o dia a dia de trabalho mais difícil, pois o trabalhador passa a se posicionar e a agir a partir de certas crenças permeadas pelo ideário de que não fizeram ou não puderam fazer “nada”. Nesse mesmo sentido, foi possível trabalharmos nas aulas o tema das recaídas do usuário de drogas: "mas ele vai voltar pra boca!". Poder constatar que é justamente isso o que pode ser esperado, aponta para uma subversão de certos discursos que visam exclusiva ou primordialmente à abstinência, um mundo livre de drogas, um universo harmônico ideal que traz como derradeiro, um impossível intransponível.

Na medida em que estamos em outro campo discursivo, contemplado pela Redução de Danos - e dentro, portanto, da perspectiva da Reforma Psiquiátrica -, é possível encararmos os fenômenos do uso, abuso e das dependências de drogas tal como nos é apresentado por cada sujeito de maneira singular, isto é, para além do nosso próprio desejo ou mesmo de uma vontade assentada sobre um universal geralmente reforçado pela mídia e pelo discurso capitalista. Dizer que o "diferente" disso (do usuário não se manter abstinente) é que pode ser diferente; construir um saber em torno de que “se fosse fácil largar as drogas, elas não seriam um problema”, é um percurso possível de ser realizado no âmbito de nossas reflexões éticas, políticas e clínicas.

Nas aulas, pudemos trabalhar a distinção entre a postura e lógica manicomiais, proibicionista e patologizante em comparação com a postura e lógica antimanicomiais, da Redução de Danos, que permite incluir diferentes formas de ser e existir (dimensão da singularidade subjetiva), daqueles que se situam fora de uma suposta “norma” social. Também foi possivel avançar para o campo das políticas públicas existentes no país, no Estado e no município, ressaltando a importância de uma construção permanente da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Como dizia Franco Basaglia, uma desconstrução e construção permanentes para que não engessemos nossas práticas.

PATHOS / V. 03, n.02, 2016 20

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