linguístico, a ponto de ser capaz de descrever, de modo até distan-
ciado, dores e flagelos que progressivamente o alcançavam.
O tradutor, então, tem de dar conta desta multiplicidade de regis-
tros. A edição americana das Cartas (para não falar dos Cadernos)
neste ponto foi de grande ajuda, ao optar por um aparato de notas
verdadeiramente abundante. Seguimos este exemplo, pelo menos em
parte, na edição brasileira. E, para falar a verdade, algumas cartas
foram reescritas mais de uma vez em português, até chegar ao que
parecia ser um tom adequado. Mas quem tem de julgar é o leitor.
Quais são as questões que exigiram a ajuda de italianos para
que fosse possível traduzir de forma acessível conceitos e pensa-
mentos do prisioneiro em português? Sabemos que o estilo didático
e dialógico de Gramsci pode ajudar por si só um tradutor: mas
quando a linguagem assume um viés mais popular, com modos de
dizer e provérbios, por exemplo, não presentes na cultura brasileira,
como é que se procedeu?
Como disse acima, em tempos de internet estes problemas
podem ser superados mais facilmente. Chega a ser engraçado
imaginar como era este trabalho há décadas, quando o Noênio
Spinola topou traduzir pela primeira vez... A comparação com
agora é até covarde. Claro, o que menos atemoriza são os temas e
questões da história política, da III Internacional, do universo
comunista. Isso compõe uma linguagem mais ou menos universal
e padronizada. As descrições de cunho geográfico, alusões históri-
cas, etnográficas, bem como as próprias referências ao cotidiano é
que nos surgem, muitas vezes, como um quebra-cabeça. Por um
lado, aqui é preciso gostar deste tipo de quebra-cabeça, passar
uma manhã ou um dia, e até mais, a perseguir o exato sentido de
uma cena e até de uma palavra; e, quando não se consegue, recor-
rer aos amigos. O falecido amigo Giorgio Baratta, quando não
ajudava diretamente, providenciava auxílio extra da “cavalaria”,
que veio na forma de emails e textos de Guido Liguori, Frank
Rosengarten, Fabio Frosini, Antonio A. Santucci, Toni Infranca,
para não falar da constante troca de opiniões com o Carlos Nelson
e o Marco Aurélio. Caixas e caixas de emails foram preenchidas,
com centenas ou milhares de mensagens. Nem todas sobre Gramsci,
é evidente, pois muitas testemunham uma amizade intelectual
entre nós, acima de divergências pontuais; todas elas, no entanto,
me ajudaram a realizar o que o Carlos Nelson tantas vezes chamou
de trabalho prazeroso, um trabalho que nos uniu por alguns anos
e que está agora submetido ao olhar e à crítica do leitor brasileiro.
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Gesualdo Maffia