Meu objetivo é mostrar como é fundamental para a filosofia
política de Hannah Arendt sua interpretação de Marx, na medida
em que ele expôs as perplexidades de seu tempo e ousou opor-se à
tradição, tornando possível, também por suas contradições, escla-
recer o que estava em jogo no século 20, o que, portanto, deveria
servir de referência à investigação dos princípios de uma necessá-
ria nova filosofia política. A relevância da afirmação da individua-
lidade e da liberdade de cada homem sempre esteve no horizonte de
Arendt como regeneração possível diante do totalitarismo. A garan-
tia da liberdade do homem é a garantia de sua espontaneidade, e é
dessas qualidades que advém a salvaguarda do caráter plural da
ação, concepção-chave do seu pensamento político.
O homem, o indivíduo do século 20, foi aviltado porque (des)
integrado no grupo, no partido, no fenômeno da massa. Os anos
50 e 60 foram fartos em críticas à nascente cultura de massa,
expressão absolutamente equivocada, segundo Arendt, pois
massa seria o oposto de cultura, o processamento para torná-la
palatável, portanto, uma traição à arte. Mas não vamos enveredar
por esse caminho. Apenas gostaria de mencionar a ideia do
homem da multidão, já enunciada no célebre conto de Edgar Allan
Poe, de 1840: a figura do homem abandonado, perdido até de si
mesmo no mar de pessoas da cidade, impossibilitado de se ver nos
olhos dos outros. É semelhante ao homem que Arendt identifica
como aquele que não pensa, porque mergulhado na solidão, inca-
paz de ver a si mesmo, de refletir. É um homem, portanto, diluído
na sociedade, destituído de sua espontaneidade. Ele não é um
único na pluralidade, o que ameaça este mesmo caráter plural,
algo fatal para o pensamento e para a política.
Segundo Arendt, essa perda do indivíduo está no materialismo
anterior a Marx e na metafísica idealista. Mas a perda do indiví-
duo também está nas concepções do labor como criador do homem
e na substituição da humanidade pela sociedade em Marx, assim
como no totalitarismo. Caracteriza-se por “ignorar a inevitabili-
dade com que os homens se revelam como sujeitos, como pessoas
distintas e singulares, mesmo quando empenhados em alcançar
um objetivo completamente material e mundano”. O espontâneo,
que é a consequência da ação de cada indivíduo em seu exercício
de pensar e julgar, ou seja, ser livre, torna-se refém de uma visão
totalizante, de um processo histórico inescapável que a tudo
engole. Como esclarece Arendt sobre o totalitarismo, os líderes
das massas “começaram a dizer ao populacho que cada um dos
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Adriana Novaes