O imprevisível 2018 PD49 | Page 138

Meu objetivo é mostrar como é fundamental para a filosofia política de Hannah Arendt sua interpretação de Marx, na medida em que ele expôs as perplexidades de seu tempo e ousou opor-se à tradição, tornando possível, também por suas contradições, escla- recer o que estava em jogo no século 20, o que, portanto, deveria servir de referência à investigação dos princípios de uma necessá- ria nova filosofia política. A relevância da afirmação da individua- lidade e da liberdade de cada homem sempre esteve no horizonte de Arendt como regeneração possível diante do totalitarismo. A garan- tia da liberdade do homem é a garantia de sua espontaneidade, e é dessas qualidades que advém a salvaguarda do caráter plural da ação, concepção-chave do seu pensamento político. O homem, o indivíduo do século 20, foi aviltado porque (des) integrado no grupo, no partido, no fenômeno da massa. Os anos 50 e 60 foram fartos em críticas à nascente cultura de massa, expressão absolutamente equivocada, segundo Arendt, pois massa seria o oposto de cultura, o processamento para torná-la palatável, portanto, uma traição à arte. Mas não vamos enveredar por esse caminho. Apenas gostaria de mencionar a ideia do homem da multidão, já enunciada no célebre conto de Edgar Allan Poe, de 1840: a figura do homem abandonado, perdido até de si mesmo no mar de pessoas da cidade, impossibilitado de se ver nos olhos dos outros. É semelhante ao homem que Arendt identifica como aquele que não pensa, porque mergulhado na solidão, inca- paz de ver a si mesmo, de refletir. É um homem, portanto, diluído na sociedade, destituído de sua espontaneidade. Ele não é um único na pluralidade, o que ameaça este mesmo caráter plural, algo fatal para o pensamento e para a política. Segundo Arendt, essa perda do indivíduo está no materialismo anterior a Marx e na metafísica idealista. Mas a perda do indiví- duo também está nas concepções do labor como criador do homem e na substituição da humanidade pela sociedade em Marx, assim como no totalitarismo. Caracteriza-se por “ignorar a inevitabili- dade com que os homens se revelam como sujeitos, como pessoas distintas e singulares, mesmo quando empenhados em alcançar um objetivo completamente material e mundano”. O espontâneo, que é a consequência da ação de cada indivíduo em seu exercício de pensar e julgar, ou seja, ser livre, torna-se refém de uma visão totalizante, de um processo histórico inescapável que a tudo engole. Como esclarece Arendt sobre o totalitarismo, os líderes das massas “começaram a dizer ao populacho que cada um dos 136 Adriana Novaes