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12 Barroso Noticias de 17 de Dezembro de 2014 Reminiscências do Passado – lll Rotas do carvão A partida iniciavase geralmente ao fim da manhã. Depois de colocada a cabeçada à cavalgadura, prendia-se a arreata à carga, deixando o quadrúpede livre de movimentos. O dono seguia atrás, empunhando uma vergasta; à força das muitas viagens efectuadas as azémolas já conheciam de cor o percurso, só esporadicamente era necessário corrigir o trajecto. O meu informador, e como ele muitos, à época ainda criança, revelou-me que fizera várias viagens descalço, transportando consigo umas simples alpergatas de lona que só calçava à entrada da cidade. Abalavam da encosta de um cerro, defronte ao meu sere no burgo de Contim, conhecido por Alto de Pombeiro: “Lá vem a névoa a Pombeiro, solta a vaca e apanha o apeiro”, seguiam o caminho de Veade, cruz de Boubelho, na degola do monte flectiam definitivamente para leste contornando pelo sul as faldas do Alto de Ribas. A viagem continuava a meia encosta pela vertente meridional do maciço do Ourigo, passando ao largo das povoações de Parafita, Penedones, Travassos da Chã. Aqui chegados, principiavam a descer para o vasto planalto do rio Rabagão que cruzavam, tomando seguidamente a direcção de Morgade. A caminhada prosseguia na companhia omnipresente da tríade arbustiva e austera que reveste maioritariamente a nossa charneca: a carqueja, a giesta e o mato e ocasionalmente pelas penugens aladas de fumo ascendentes, que a custo se libertavam do interior dos casebres, diluindo-se no vasto espaço. Uma vez por outra, em consequência do constante balouçar da carga, tornava-se imperioso reajustá-la. Rebordelo tornava-se a próxima etapa, a cujos pés flui ágil e cristalina a corrente do rio Beça. Depois da travessia ganhavam a ladeira que conduz ao Alto Fontão. Aqui chegados, de bom grado, os nossos voluntariosos intervenientes deixavam espraiar o seu olhar através dos vastos horizontes que dali se abarcavam!... Mais além, uma vaporosa neblina A ceia resumia-se a um naco de pão e a uma talisca de toucinho, quando a havia. Cada um deles, donos e animais, tratavam de se acomodar o melhor possível numa fraternidade mamífera. No dia seguinte, bem cedinho, punham-se a caminho acompanhados pelo bruxulear prateado das estrelas. Advinham-se já os primeiros alvores arroxeados polvilhando delicadamente a esfera celeste vespertina pairava sob a veiga de Chaves: a tão apreciada Ribeira estendia-se a seus pés, uma espécie de Terra Prometida, onde o maná corria a jorros. A descida do Leiranco processavase a um ritmo célere. A partir daqui seguiam a EN 103. Os primeiros sinais anunciadores do crepúsculo perfilavam-se já no horizonte. Não tardavam a alcançar Sapiãos, seguia-se Sapelos: «Pela estrada plana, toc, toc toc...». Surge por fim Casas Novas, e já na estrebaria, (havia uma outra em Sapiãos) a que se recolhiam, desaparelhavam as alimárias, retiravam algum feno da charega para pensarem as bestas. a Leste. Em marcha cadenciada passam por Curalha. O Tâmega encontra-se já ao alcance do campo de visão. O meu informador relatoume que quando chegavam às margens do rio, ao longo do seu curso até à cidade, eram embalados pelo mavioso e nostálgico canto dos rouxinóis, similar a um episódio do poverello da Úmbria. Dir-se-ia que as avezinhas, condoídas de tanta miséria e de tantas tribulações por parte daqueles infelizes, decidiam confortá-los com os seus cantos inspirados e inefáveis. Nem mesmo a divina arte do insigne mestre de Salzburgo conseguia superar! VENDE-SE Terreno em Paio Afonso, freguesia de Pondras, situado perto da aldeia e a poucos metros da EN 103. Contactos: 0044 2078 010377 e 0044 77 170 12329 Aqueles trinados eternos e misteriosos provocavamlhes na alma um misto de enlevo e “saudade” (o termo mais empregado pelo meu informante). Por aqui se pode aquilatar, não obstante uma existência rude e elementar do grau de sensibilidade patenteado na intuição e fruição do belo e do sublime. Para além desta rota havia uma outra variante que de Contim continuava o mesmo traçado até Rebordelo. Daqui dirigia-se à mãe d’água, Vilarinho d`Arcos, Arcos, descida do Leiranco, Ardãos, Seara Velha, Soutelo e por fim Casas dos Montes, onde se acolhiam à estrebaria local. Ei-los, por fim, às portas da cidade. Aqui estavam sujeitos ao pagamento de uma taxa ou contribuição por qualquer mercadoria ou bens transaccionáveis: a chamada taxa de intendência, uma espécie de portagem. À época, a cidade de Chaves circunscrevia-se ao antigo burgo e pouco mais, tendo como artéria principal a rua direita, bem como pequenas ruelas circunvizinhas. Na margem sul do rio, ligado à cidade pela ponte romana, situava-se o bairro da Madalena. Com a arreata do burro pela mão percorriam a cidade à procura de quem comprasse carvão. Eram questionados com frequência: - «O carvão é bom, ele espirra?» – Muitas das vezes vendiam a carga de carvão a duas pessoas diferentes. Depois do negócio ultimado, dirigiam-se a uma taverna para comerem parcamente uma bucha. A taverna do Faustino era a mais frequentada. Algumas vezes levavam dois odres em que transportavam vinho para consumo em casa, especialmente na época das fainas agrícolas intensas. Cada odre continha aproximadamente 22 a 25 l. Também compravam uma ou duas canadas de aguardente, esta medida equivalia a 2.5 l. A meio da manhã punhamse a caminho, desta vez na direcção inversa, a viagem de regresso concluía-se duma só tirada «Antes que anoiteça, toc, toc, toc,…». Já no termo final da jornada, por alturas de Parafita viravam a noroeste depois de dobrada a cumeada serrana, passavam ao lado do fojo da Avelanda, já no termo de S. Pedro. Ladeada a colina de Amorinhos, surgia mais em baixo o santuário da Vila de Abril em honra de nossa senhora da Natividade, aprazível lugar onde outrora teria existido um pequeno ermitério associado aos caminhos de Santiago. Contim aninhava-se ao fundo do vale. Os jumentos reconhecendo o solo familiar desatavam a zurrar atroando os ares com estrépito, num recital dissonante; valia mais a intenção do que propriamente os efeitos sonoros produzidos. Talvez para anunciarem a sua chegada e a dos seus donos a toda a comunidade equídea ou então, como uma manifestação de júbilo e de reconhecimento por terem chegado sãos e salvos. Que soberbo panorama! Para poente, como pano de fundo, avistam-se os picos serrilhados do Gerês. Quantos pores-do-sol arrebatadores dali não foram poetizados…! Limiar crepuscular de uma fronteira entre dois mundos que aí se cruzam: do real para o fantástico, do nosso mundo para o Além –mundo. Fernando Dias de Moura