Eu sou o
Pássaro-do-Sol
www.jonatanstrange.com
Mania de falar de livros. Café combina muito
bem. Tanto com os livros, como com a mania
de falar deles. Numa das tantas reclamações da
ausência do mesmo, alguém, inusitadamente, se
compadece da minha súplica e aumenta o coro
"Alguém dê por favor um café para o Senhor".
Algo realmente bobo. Num tom que parecia
sem maiores pretensões. Parecia. Desconfio
seriamente que naquele 20 de agosto ela já sabia
mais sobre mim do que eu imaginava. Mas, pouco
importa hoje ou algum dia. Lívia, não era o nome
dela, mas, é assim que vou chamar.
Poderia se chamar Ana, Bárbara ou Catarina. Uma
mulher comum apenas. Talvez. Cheia de medos
e vontades. Gostava de ler, tinha vergonha em
dizer que consumia pornografia todos os dias e
adorava os personagens da Disney. Não morava
perto. Falei que não gostava de pessoas de longe,
ou se gostava, não criava maiores expectativas.
Ia acontecer algumas vezes, muita vontade, a
distância iria doer e nos afogaríamos em horas
gastas de longos diálogos em tecnologias que
não aquecem o pé no inverno. Também gostava
do inverno e odiava o calor do Rio, mesmo tendo
nascido lá. Mas, pouco importa, sabia que ia
terminar os estudos e morar num lugar frio. Talvez
com neve. Quem sabe o Canadá. As roupas longas
escondem bem os hematomas e ela tentava
preservar eles, mesmo com a facilidade que
tinha em não se marcar. Queria ser marcada. Mas,
os homens sempre a tratavam como princesa,
aquelas que gostava, mas, não queria ser igual.
Sempre preferiu os vilões e o ser forçada.
Aliás, era o que mais desejava sempre. Ser forçada
a tocar outra mulher, a ser objeto para muitos
homens, ser forçada a ser privada e privada. Mas,
no mundo real é difícil falar algo assim. Ainda
mais pela educação que teve, extremamente
conservadora e respeitosa.
Não demorou muito para os diálogos longos logo
demonstrarem o interesse da moça. Avisei que não
se iludisse, eu tinha outras e de muito mais perto.
Não se importou e ainda se fez mais presente.
Tão presente, que desembarcou no aeroporto. Fiz
todo aquele terrorismo "irá se ajoelhar e beijar os
26
por Jonatan Strange
Ilustração por Jana
meus pés no aeroporto, na frente de todos, como
prova do que quer... não, apenas vir não demonstra
nada". Acabei arranjando motivos e houve um
atraso proposital. Mandei que pegasse um táxi e
que fosse para o hotel. Que tomasse um banho,
apagasse as luzes e me esperasse vendada. Não,
ela não iria me ver. Um ótimo primeiro contato.
Claro, detalhes técnicos. Porta fechada. "Deixe o
seu recado após o sinal, bipi", caixa postal. Bato na
porta. Escuto um arrastar do outro lado e logo a
maçaneta não me impede mais. Tremendo, era de
se esperar. Respiração alterada. Gostei do cabelo
dela, faz volume entre os dedos. Puxo um pouco
para o rosto ficar melhor exposto. O primeiro
tapa, mesmo com a pouca luz que teima em
entrar pela janela, deixa a bochecha vermelha. O
próximo é no outro lado, simetria, com as costas
da mão. Um pequeno gemido. Curto. Boto ela de
joelhos pra cheirar a minha braguilha. Apenas.
Não há palavras. Ela tenta erguer os braços para
abrir a minha calça e jogo eles para trás. Apenas
cheire. Entende o recado, mesmo em silêncio.
Era uma noite agradável de outubro. Muito já
havia sido combinado. A palavra, gestos caso não
conseguisse falar e sempre sem perder o foco
"você vai ser apenas testada". Tolice minha pensar
assim. Ou pelo menos dizer algo assim em voz alta,
sendo que sei que gostei dela, a doçura e o tanto
que faz por mim. Antes mesmo de pisar na ilha
já havia chamado ela de egoísta e que só estava
vindo porque não havia encontrado alguém com
coragem de dizer isto antes. Eu sei que doeu. Mas,
se não dói, não é real. E sem dúvida o que ela
procurava era abandonar a máscara, aquela que
tanto pesava no rosto pra fingir ser "boa moça".
Ela era uma vadia, nunca duvidou disso, mas,
a vergonha não deixava de ser maior por conta
de tal certeza. "Não tenha pena de mim" foi uma
das últimas frases antes do silêncio de hoje. E ela
tinha esperança que realmente tivesse.
Aquela noite aconteceu, coisas simples e básicas,
que servem pra leitura do outro. Corpos estranhos
dão muito trabalho para a percepção. Estava
cansado e logo fechei os olhos. Tive a sensação
que continuou a me observar, como se tudo o
que tinha desejado acabara de ganhar pele e
cheiro. Acordo com a mesma impressão. Tenho