KAIROS Edição Especial - Dia Aberto 2015 | Page 21

da sua graça; o caráter fortemente contagiante do riso – rimos por ricochete do riso do outro, e assim perpetuamos o efeito da piada; finalmente, é o público que consente a transgressão embutida na suspensão do recalcamento promovida pela piada. Sem essa autorização, o efeito de graça sucumbiria ao constrangimento provocado pela evidência da satisfação pulsional obtida pelo piadista, derrapando para o terreno ofensivo da obscenidade.

Paradoxalmente, na sua primeira abordagem do problema, Freud ([1905] 1980) imagina que, ao contrário do piadista, o humorista poderia prescindir do público para extrair graça da sua arte, o que aponta para um estado de solidão que parece acompanhar, em maior ou menor grau, a capacidade para o humor.

A capacidade de rir de si mesmo que define o humor é índice não apenas do descentramento em relação ao próprio eu, mas também em relação aos ideais reguladores da vida social.

O ego superinveste o superego, e “para o superego, assim inflado, o Ego pode parecer minúsculo, e triviais todos os seus interesses” (Freud, [1927a] 1980: 192). E, a partir dessa nova configuração económica, o superego tem sucesso em enunciar bondosas palavras de conforto ao ego intimidado, que podem ser traduzidas da seguinte maneira: “Olhem! Aqui está o mundo, que parece tão perigoso! Não passa de um jogo de crianças, digno apenas de que sobre ele se faça uma pilhéria!” (Freud, [1927a] 1980: 194). É o que permite que Freud afirme que “o humor é a contribuição feita ao cómico pela intervenção do superego” (Freud, [1927a] 1980: 194), ao passo que a piada seria a contribuição feita ao cómico pelo inconsciente (Freud, [1905] 1980).Para as orelhas familiarizadas com o discurso psicanalítico, é surpreendente encontrar descrita uma faceta do superego que, ao invés de sádica e tirânica, se apresenta benevolente e tranquilizadora.

Há, de fato, importantes pontos de convergência entre sublimação e humor: ambos implicam processos que se situam na fronteira entre a defesa frente à angústia promovida pelos excessos pulsionais e o movimento criador; encontram as suas fontes originárias no brincar infantil; indicam uma afirmação do sujeito e das suas experiências de prazer e de alegria apesar do reconhecimento dos limites impostos a qualquer triunfo onipotente; e, finalmente, produzem uma modalidade de laço social baseado não na repressão pulsional, mas no compartilhamento afetivo.

A sublimação é descrita como um processo no qual, num primeiro tempo, o sujeito experimenta um desligamento dos objetos que, até então, mereceram o investimento da sua “libido do objeto” (ou “sexual), o que implica, portanto, uma dessexualização, a libido sexual desligada voltando-se ao ego, tornando-se “libido do ego” ou “narcísica”. Mas essa introversão da libido é, também – por meio de um mecanismo muito pouco elucidado que só pode ser nomeado de trabalho de luto –, a condição para que o sujeito crie novos objetos de investimento que venham a adquirir valor social, metamorfoseando a libido do ego mais uma vez em libido sexual, ou seja, promovendo uma sexualização.

Nesse sentido, a sublimação aponta, de um lado, para a possibilidade do trabalho de luto e, de outro, para o movimento metonímico do desejo, constituindo tanto uma “modificação da finalidade” quanto “uma mudança de objeto” da pulsão (Freud, [1932b] 1980: 121).