Jornal Pontivírgula | Novembro | Page 47

ESCRITA CRIATIVA

Bateram à porta. Manda entrar, Alexandre. Da próxima, manda pedir se faz favor, não me interessa o que tragam.

Era um embrulho. Vermelho inebriante, mas, mais do que isso, o laço dourado apelava à contemplação. Ele levantou-se, agarrou e não gostou do que tateava, era firme e não lhe desencadeava opinião imediata. Mais tarde iria abominar o que via.

Ficou sozinho na sala. A um canto, muitas bandeiras e fotografias de homem só, nunca de homens sós. No centro, Ele sentado de embrulho na mão. Não tinha remetente, mas os remetentes são irrelevantes quando se desconhece a mensagem. De que vale ouvir chamar pelo nome no meio da multidão, olhar para trás e ver nada? Viu o que era.

Gritou. Depois fez silêncio, e esse silêncio mais tarde gritaria de dor, choraria de mãos dadas com Ela, os dois condenados. Viam-se ser atirados na lama, embora estivessem presos num gabinete.

Arrancou o laço, fazia-o sentir-se impotente porque queria ter nascido dourado e a Natureza não o consentira. Vem cá. Traz-me um laço prateado, é a minha cor preferida. E manda pedir se faz favor imediatamente a quem entrar.

O embrulho estava pronto. O remetente eram todos e ninguém ao mesmo tempo. O vermelho era o mesmo. O laço também era o mesmo, mas estava noutro sítio. O laço era também outro, no sítio do verdadeiro. Gritou, mas desta vez não lhe doeu. Mais tarde iria adorar o que via.

O embrulho foi embrulhado quinhentas vezes sem ninguém ver. Com papel invisível, não fazia diferença. Então o embrulho começou a viagem. Mas só fez viagem porque estava selado. Só o conseguia abrir quem lhe tirava o laço. Mas todos gostavam de ver o prateado contrastar com o vermelho.

Saiu da sala e percorreu oceanos. Muitos agarraram o embrulho. O embrulho correu o mundo. Nas mãos, nas bocas, nos ouvidos. Passou algum tempo. Não importa quanto, porque o tempo é irrelevante quando se desconhece a hora. Alguns tiraram o laço, mas fecharam imediatamente o que viram.

Um dia, algumas ruas abaixo da rua do destinatário, Alexandre caminhava em direção ao trabalho. Num canto, viu vermelho inebriante. Caminhou na sua direção. Já o tinha visto nalgum lado. Tinha-o entregue a quem o adulterara. Pelo aspeto, via-se que tinha percorrido o mundo, e que as bocas e os ouvidos por onde passara tinham criado vincos no papel de embrulho. De repente, lembrou-se de que tinha deveres e de que não gostava do laço. Só não tinha aconselhado na altura que se mantivesse o dourado, porque não tinha tempo de pedir se faz favor antes de chegar à tarefa seguinte que ele lhe tinha dado para fazer.

Estava aberto. Soubesse Alexandre ou não o que era, e agora sabia-o, de facto, sempre lá esteve a mesma mensagem. O conteúdo sempre o mesmo, sempre. Isto sei-o eu, que sou daqueles narradores que sabem tudo e que sou imune à palavra da espécie humana. Alexandre percebeu então que tinha visto a viagem do embrulho na televisão, e uma lágrima escorreu-lhe pela face. Olhou de novo para o conteúdo e viu-A. Ele teve-A nas mãos antes de Ela chegar ao adulterador e aos seus seguidores. Agora, depois de Ela dar a volta ao mundo, tinha-A nas mãos, de novo, mas já não sabia que destino lhe haveria de dar. Fechou o embrulho sem o trancar, deixou-o sem laço e colocou-o no meio da rua.

A Verdade

Carolina Gaspar