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Nº 9 - Agosto 2017

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Miguel reflectiu naquilo por momentos. Depois de o porem a par da história mais surreal que ele ouvira, e depois de ele ter aceitado o facto de que a história delas só podia ser verdade – há poucas formas de fingir o fogo que ele vira a sair das mãos delas – elas tinham prometido levá-lo de volta para baixo, tinham prometido protegê-lo se ele confiasse nelas e se prometesse, por sua vez, nunca falar sobre Aperos e sobre as suas gentes. Se prometesse nunca voltar. Só queriam viver em paz, deixá-lo ir em paz, também. Ele concordara. Era uma história tão rebuscada, de qualquer forma, e não tinha intenções de criar problemas a ninguém. Já perdera mais do que a conta: falhara nos seus objectivos pessoais e profissionais; o frio, o cansaço e uma série de outros azares tinham-lhe levado os seus melhores amigos e companheiros de aventura e nem tivera sequer tempo de chorar por eles. Queria voltar a casa e ficar por lá durante muito, muito tempo. Sabia que voltaria a seguir em direcção ao topo de outras montanhas um dia – estava-lhe no sangue – mas precisava de fazer o luto, precisava de perder o medo e a culpa que o perseguiam desde que abandonara os corpos dos amigos a decomporem-se sobre a neve branca, porque a outra opção teria sido tornar-se mais um corpo, como eles. Perdera a noção de quanto tempo andara à deriva pela montanha, tentara tomar notas escritas durante semanas, mas à medida que subia e os dias passavam, os dedos deixavam de conseguir escrever e perdera a lucidez para tomar notas mentais.

Elas tinham combinado levá-lo de volta dali a uma semana. Escarlate pediria permissão à aldeia para visitar a terra lá em baixo, e nesse dia Sora e Ignis estariam novamente de guarda. Sairiam os dois de noite, com provisões e acessórios para várias semanas, assim que elas tomassem a guarda da entrada de Aperos. Se fossem cuidadosos, o plano tinha tudo para correr sem percalços.

Miguel terminou o chá e foi deitar-se; a altitude ainda continuava a deixá-lo tonto e com dificuldade em respirar. Quanto mais depressa pudessem tirá-lo dali, melhor, mas sabia que não podiam correr riscos.

Ignis sentou-se no chão da sala a ler um livro com mapas e pontos cardeais, traçando com o dedo o percurso que Escarlate e Miguel teriam de seguir. O mapa estava gasto, a linha vermelha que apontava o percurso parecia ter sido traçada há muito tempo, parecia até falhar em partes, como se um dedo semelhante ao de Ignis tivesse seguido lentamente a mesma linha vezes sem conta.

– Ignis, vamos para casa?

Sora chamou, a porta da rua entreaberta, e depois virou-se de novo para sussurrar um agradecimento a Escarlate, que lhe colocava um saco com pão fresco nas mãos.

Ignis fechou o livro, e quando se preparava para o colocar na estante, uma folha de papel caiu de entre as páginas. Sem saber bem porquê, não a abriu de imediato; em vez disso guardou-a no bolso, colocou o livro de volta na estante e, quando Sora chamou de novo, seguiu-a para casa.

Sora deitara-se logo, extremamente cansada. Os últimos acontecimentos pareciam tê-la afectado sobejamente.

Uns minutos mais tarde, Ignis espreitou pela porta entreaberta, certificando-se de que a guardiã dormia profundamente. Um leve ressonar deu-lhe a certeza de que precisava.