Fraternidade. Releitura civil de uma ideia que pode mudar o mundo FRATERNIDADE_MANIERI | Page 53
Fraternidade. Releitura civil de uma ideia que pode mudar o mundo
princípios da Europa ‘civilizada’ contra os ‘bárbaros’ e os ‘incivi-
lizados’ extraeuropeus”, 27 mas a consciência e a insistência sobre a
fragilidade de nossa razão, ilha num oceano de conflitos, atribu-
lações e males que teodiceia alguma é capaz de explicar.
Voltaire conclui seu Tratado exortando ao perdão fraterno:
“Tal como Deus perdoa, os homens também devem perdoar a
quem repara as injustiças cometidas. [...] Este escrito sobre a
tolerância é uma instância que a humanidade apresenta muito
humildemente ao poder e à prudência. Semeio um grão que um
dia poderá dar uma messe”. 28
Desse grão se desenvolveu a rica messe dos direitos humanos.
“Apanágio” de todo homem e toda mulher no âmbito de uma
sociedade laica, a tolerância se torna o berço de um novo direito,
baseado na consciência comum da universalidade humana.
Tal direito pode ser definido como fraterno, 29 na medida em
que, abrindo-se à tolerância, faz-se mais vizinho à particulari-
dade do indivíduo sem, no entanto, pretender colonizar toda a
sua vida e decidir sobre suas virtudes; fraterno, na medida em
que se abstém de impor, com os instrumentos da jurisdição, o
caminho do Paraíso; fraterno, porque não interfere, a não ser
que acarretem danos aos outros, nas escolhas que os indivíduos
fazem naquela “região própria da liberdade humana”, 30 que é a
esfera mais nitidamente pessoal de comportamento e vida de
27 Marramao, Passaggio a Occidente, cit., p. 202. De Marramao, ver também Prefácio a
Voltaire, Trattato sulla tolleranza, organização de P. Togliatti, Roma, Riuniti, 1994,
p. XIV.
28 Voltaire, Trattado sulla tolleranza, cit., p. 48.
29 De direito fraterno, ligado à redescoberta contemporânea do princípio de fraterni-
dade, fala E. Resta, Il diritto fraterno, Roma-Bari, Laterza, 2002.
30 J.S. Mill, Saggio sulla libertà, Milão, Il Saggiatore, 2020, p. 15. Com Mill já estamos
além dos termos em que se pôs a tolerância na discussão dos séculos XVII e XVIII.
Uma vez construído o Estado de direito moderno, a questão da tolerância perde
centralidade política. Em seu lugar surge o tema da liberdade civil, baseada no reco-
nhecimento dos direitos e do pluralismo das opiniões, não só religiosas.
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