Fraternidade. Releitura civil de uma ideia que pode mudar o mundo FRATERNIDADE_MANIERI | Page 37

Fraternidade. Releitura civil de uma ideia que pode mudar o mundo A caridade pode florescer sob e apesar de qualquer política; não põe em discussão a organização social e a distribuição do poder, mas propõe um ideal de perfeição moral no quadro de uma sociedade em que o lugar e o papel de cada qual são estabe- lecidos por Deus, de quem decorrem, exclusivamente, todo bem e toda autoridade. Assim concebido, o ideal do amor ao próximo dá lugar a uma ética que, se por um lado põe condições excepcionais incompatíveis com uma existência humana normal e, portanto, é de tal ordem que só poucos podem praticá-la, e são os santos, criaturas heroicas dotadas de uma capacidade de amor extraor- dinária, por outro deixa os demais desarmados diante da reali- dade da vida cotidiana, que é a das lutas fratricidas e dos sepul- cros caiados. Daí o paradoxo histórico da ética da caridade: a consciência realista da ineficácia prática do Sermo montanus reabilita a função do legalismo de Moisés, ou seja, a necessidade da lei e o valor da submissão a ela. Se o espírito do cristianismo é o amor – afirma Hegel –, seu destino é a Lei. 7 Que fosse pos- sível tornar-se cristão sem primeiro se tornar hebreu – observa Nietzsche – foi invenção de Paulo, mas era um erro: “Os cristãos se tornaram hebreus”. 8 O universalismo cristão A novidade da boa nova, trazida pelo cristianismo, não consiste tanto no mandamento do amor ao próximo, que deita raízes na noite dos tempos e ostenta longa e rica tradição, con- tida no Antigo Testamento (Lv. 19, 15-18) e desenvolvida pelo 7 G.F. Hegel, Lo spirito del cristianismo e il suo destino, in idem, Scritti teologici gio- vanili, Nápoles, Guida, 1977, p. 353-457. 8 F. Nietzsche, Aurora e Frammenti postumi, in idem, Opere di Friedrich Nietzsche, Milão, Adelphi, 1964, V, t. 1, p. 397-398. 35