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FARROUPILHA, 25 DE AGOSTO DE 2017
Primeiro Parágrafo
que estava de uma certa forma sentado à nossa
mesa era aquele de 1999, quando eles tinham seus
18 anos, e eu 25, aquele ano em que havíamos exis-
tido com uma intensidade que nunca mais se repe-
tiria”, relata Emiliano quando o trio se encontra logo
após o enterro, momento em que recebe um convite
para escrever uma biografia do amigo.
O livro é narrado por Aurora, Emiliano e Antero, que
fazem uso da tragédia para reverem suas próprias vi-
das e memórias, com nostalgia e saudosismo. Esse
mergulho permanente em um passado que só evoca
boas recordações gera um choque brutal, e até certo
ponto desesperador e triste, quando confrontado com
o momento atual dos personagens, oprimidos, sufo-
cados e conduzidos por caminhos que não desejavam
percorrer. É como se eles tivessem hibernado desde
a virada do milênio, como se houvesse um hiato em
suas vidas, que durou mais de uma década. É como
se esse período tivesse transcorrido de uma forma
mecanizada, do saudoso 1999 até 2014, e os pro-
tagonistas, enfim, parassem para uma reflexão e se
questionassem: “O que fizemos das nossas vidas?”.
“Onde foi parar essa década e meia?”.
É um sentimento de perda que acomete os três
personagens narradores porque as perspectivas, na-
quela véspera de início de milênio, eram promisso-
ras. Só quem viveu a efervescência de 1999 no fim
da adolescência e início da idade adulta, consegue,
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Dolores Maggioni
[email protected]
Meia-Noite e Vinte
Autor: Daniel Galera
Gênero: Romance
Literatura Brasileira
Ano de publicação: 2016
Editora: Companhia das Letras
Nº de páginas: 202
Preço médio: R$ 30,00
de fato, mensurar que era um momento especial.
Não por baboseiras de previsões de bug do milênio
ou do fim do mundo, mas pela popularização da in-
ternet, pelo avanço da comunicação, pela liberdade
de manifestação, pela estabilidade econômica. Em
um País turbulento e instável, especialmente no
campo econômico, essa provavelmente tenha sido a
única geração que conseguiu vislumbrar um futuro.
Talvez o erro seja mesmo de quem viveu o perí-
odo e imaginou algo além do que poderia aconte-
cer. Talvez a realidade fosse essa mesmo, sem ti-
rar nem pôr. Mas o mundo que se descortinava era
algo grandioso e quando as expectativas e possibi-
lidades acabam ficando muito aquém do projetado,
o anticlímax é inevitável. Emiliano, Aurora e Antero
parecem ter sido atropelados, engolidos pela velo-
cidade dos anos sem ao menos se darem conta dis-
so. E de fato foram. Caso contrário não fariam exer-
cícios constantes de digressão até o saudoso 1999.
O trio pertencia a uma turma que queria abraçar o
mundo. Evidente, não era possível.
A obra mais recente de Daniel Galera tem muito
a ver com um livro escrito há 11 anos. Se “Mãos de
Cavalo”, de 2006, falava sobre pré-adolescência
e das angústias de uma vida adulta consolidada,
“Meia-Noite e Vinte” preenche o vazio entre esses
dois momentos, que vai da adolescência até o iní-
cio da vida adulta que ainda clama por um rumo.
Mas não resta a menor dúvida que o texto de seu
último romance está muito mais rico, sofisticado
e, sobretudo, carregado de referências culturais e
históricas que aproximam sua obra dos leitores de
sua faixa etária. Quem está beirando os 40 anos,
certamente vai se identificar. Para nostálgicos e
saudosistas, uma leitura obrigatória.
Barco
de Vidro
Icei hoje, as velas do meu Barco de Vidro. Deixei-
-o livre para navegar rumos incertos. Chovia, garoava,
fazia frio... De quando em vez, o sol espiava tímido, va-
rando as nuvens com suas unhas amarelas.
Sucediam-se as paisagens... lenhas empilhadas,
tufos de flores, muralhas, montanhas, canoas, cava-
los tristes, ventos, medos. Na melancolia da tarde pa-
rada algumas aves marinhas feriam de súbita morte o
silêncio possante que domin