Edição 500 Edição 500 | Page 27

FARROUPILHA , 25 DE AGOSTO DE 2017

Inside

3

Literatura

ciência como um caminho de salvação , Andrei é um artista que coloca a escrita com prioridade absoluta . Essa é uma distinção possível entre os personagens , mas há várias outras , de sensibilidade , gênero , filosofia pessoal . Tentei elaborar as diferenças entre eles não como um sistema de contrapesos , e sim como um conjunto de contradições e ambiguidades .
Informante : Essa geração , que nasceu no final dos anos 70 e início dos 80 , na tua obra , parece que esperava demais do mundo , queria abraçá-lo e tal . Parte da frustração vem daí ou a expectativa foi maior do que a realidade ?
Galera : Suspeito que a frustração dessa geração vem mais do conjunto de ideologias e expectativas que foram gestadas em sua juventude . Ideologias liberais e de realização pessoal , canalizadas pelos movimentos culturais dos anos 60 e 70 e pela relativa estabilidade econômica dos anos 90 . Entrar na vida adulta na virada do milênio , para a classe média , era acreditar na liberdade de traçar o próprio futuro , de ter sua individualidade respeitada e valorizada pela sociedade . Do início do século 21 em diante , porém , o que vemos é uma crescente precariedade da economia e da estabilidade política , associada a terrorismo , crise ecológica , a velocidade desnorteante das transformações tecnológicas . De repente , essa mesma geração se vê insegura , desfocada , incapaz de imaginar o futuro . Quis registrar exatamente isso no meu romance .
Informante : O CardosOnline foi o ponto de partida para o “ Meia-Noite e Vinte ”? Qual a importância dele para o teu romance ?
Galera : O COL foi a fonte de inspiração para o Orangotango , fanzine
Obras na telona Os cineastas Beto Brant e Renato Ciasca adaptaram “ Até o Dia em que o Cão Morreu ” em 2007 , com o título de “ Cão sem Dono ”. No ano passado , o diretor Roberto Gervitz lançou “ Prova de Coragem ”, que foi baseado em “ Mãos de Cavalo ”
eletrônico que os protagonistas escrevem na juventude . Embora não tenha me preocupado em retratar a história do COL e de seus colaboradores com rigor fatual , quis reproduzir aquele momento de euforia e experimentação trazido pela internet , uma fase em que a expressão individual encontrou novas possibilidades . Ao mesmo tempo em que todo mundo de repente podia ter voz , houve um reforço do narcisismo . Hoje podemos ver a semente das práticas e discursos das redes sociais naquele momento inicial da rede , mas havia também um espírito de autonomia e rebeldia que se perdeu com a expansão das plataformas como Google e Facebook , que moldam e enquadram os discursos individuais em algoritmos , bolhas de interesse e modelos ditados por publicidade .
Informante : Há um paradoxo interessante na tua obra que os amigos , tão próximos no final dos anos 90 , ficaram distantes justamente quando a comunicação aumentou e se imaginava justamente o contrário . Essa questão de isolamento é muito debatida . Foi um tema deliberadamente inserido na obra ou uma consequência natural do período ?
Galera : Creio que esse paradoxo
Imagens : Reprodução
que tu identifica se manifesta de diversas maneiras no romance e é fruto de contradições muito presentes na vida das pessoas . Assim como as amizades , também as relações afetivas e sexuais , as relações de trabalho e a política representativa se encaixam nesse duplo movimento de acesso total e instantâneo de um lado , e um afastamento físico ou prático do outro . Há nuances aí , não se trata de uma gangorra tão esquemática , mas são movimentos paradoxais , sim , que considero importantes pra entendemos o espírito da vida contemporânea . As novas tecnologias trouxeram benefícios enormes , um potencial de transparência e comunicação que há meros 20 anos soaria como ficção científica , mas no mesmo pacote vieram novas modalidade de alienação e isolamento , e precisamos identificar e pensar sobre isso . Acho que a relação dos personagens de “ Meia-Noite e Vinte ” com a política , bem como suas variadas maneiras de lidar com o sexo e relacionamentos afetivos , demonstra em alguma medida esses paradoxos .
Informante : “ Meia-Noite e Vinte ” está repleta de referências culturais que fizeram parte da tua , nossa geração e , mais , há muitas referências de Porto Alegre . É bem provável que daqui a uns 40 , 50 anos , teu livro sirva como um resgate histórico quando alguém quiser saber o que se passou com a juventude da virada do milênio . Se alguém perguntar : “ Como será que foi a entrada nesse milênio ?”, é bem provável que citem tua obra . Acredita que esse caráter documental pode contribuir para torná-la ainda mais relevante no futuro ?
Galera : Ficaria feliz se o livro pudesse cumprir , junto com outras obras contemporâneas , esse papel , embora não tenha sido escrito com esse objetivo . Mas sempre que escrevo sobre o presente ou passado próximo , o que é o caso na grande maioria dos meus textos , me preocupo em registrar a vida contemporânea em alguma medida , para o leitor de agora e do futuro . A importância vital da arte e da literatura inclui também esse aspecto documental , ou de registro de hábitos e valores de uma época , e gosto de colocar isso nos meus livros .
Informante : Duas obras tuas já foram adaptadas para o Cinema . Acredita que “ Meia-Noite e Vinte ” renderia um bom filme ? Alguém já se interessou pela aquisição dos direitos para uma adaptação à telona ?
Galera : Houve interesse de uma ou duas pessoas , mas não tenho intenção , por ora , de negociar os direitos desse romance para o cinema . Ao contrário de obras anteriores , me sinto mais possessivo com esse livro em termos de adaptações . Gosto de imaginá-lo existindo somente como romance . Mas isso pode mudar .
Informante : Algum novo projeto ou trabalho a caminho ?
Galera : Estou escrevendo alguns contos , mas não tenho nada muito concreto ainda .