Calma penada
a cada passo vou retalhando a minha força e deixando o
receio crescer e tomar forma dentro da minha cabeça, da
minha alma, o arrependimento tem garras e eu sinto-as em
cada centímetro, como é que me levantei sem o casaco, como
é que me esqueci de tocar no bolso de dentro, o que é que
estava dentro daquele envelope, e se era o dinheiro da
indemnização, que estupidez, quanto muito seria um cheque,
mas o envelope era pesado e ela insistiu em que o abrisse, e
se eles estivessem a comprar o meu silêncio, e se ali estava o
meu sustento nos próximos tempos, a chave de casa também
lá estava no bolso, e agora, como é que explico isto a ela, ter
de lhe pedir a chave e vinte e cinco escudos para o café?
*
Número quarenta e quatro, cheguei, respiro fundo, o
céu parece-me lilás, os óculos escuros ficaram em casa, acho
eu, espero eu, toco à porta e esta abre automaticamente, não
conheço a porteira, não quero subir, prefiro que a chamem e
que ela desça para falarmos a sós.
Bom dia, gostaria de falar com a Conceição, por favor.
Peço desculpa, Conceição, não conheço…
Não conhece?
Peço desculpa, senhor, trabalho aqui há pouco tempo, deixe-me ligar para cima e perguntar, peço desculpa novamente.
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