Tiago côrte-real
mesmos. Apareceram–me à porta dois agentes novatos,
daqueles que sentem a Lei como um ser mutável . Para além
de uma passividade irritante, queriam por força entrar em
minha casa, coisa que lhes neguei veemente. Para lhe ser
honesto, a farda sempre me incutiu mais desconfiança que
respeito. A autoridade está ali para reprimir e não proteger e
quem pensar o contrário é um idiota.
Enfim, da minha porta entreaberta lá dei todas a
informações que me pediram, mas creio que pouco ou nada
posso esperar. Do último degrau das minhas escadas, um
deles lançou em forma de aviso que iriam verificar a
veracidade da denúncia, e que se eu sabia que falsos alarmes
traziam consequências. Ao que parece, de vítima passei a
perpetrador, uma qualquer personagem imaginada por
Kafka, a ser julgado por desconhecidos num tribunal
improvisado num vão de escada, executado por carrascos
que de dia são alfaiates e de noite parceiros de negócio de
Caronte. Apesar de cobarde, confesso que não viraria a cara
a uma descida do pano desse tipo.
Se ao menos as minhas articulações me deixassem
pensar. Este ribombar começa a dilatar–me as têmporas.
Mistura–se com o batimento cardíaco, num ritmo bip
bopeado alucinante e, começo a temer, demente. Por vezes,
se fora da minha janela o mundo estiver em silêncio, sou
capaz de jurar que a ausência total de cartilagem deu origem
10