TIAGO CORTE-REAL
cimento, imediatamente rodeados por pés descalços e facas
reluzentes. Mas a duração destas miragens ocasionais eram
ainda mais reduzidas que a sua frequência. O porto derreteu–
se, os barcos afundaram e pescadores regressaram ao
anonimato. Olhou mais uma vez. À sua frente lá estava o
mesmo mercado do peixe, as mesmas vendedoras estridentes
e as mesma carrinhas frigorificas que levavam o peixe para o
Alentejo, Beiras e Norte Transmontano.
Enquanto pensava em tudo o que lhe fugia, Menstap
atirava ao ar uma velha moeda de bronze, perdido no torpor
adocicado com que a Lisboa de hoje o presenteava. As
sombras do final do dia iam largas pelos telhados da Baixa e
a janela claustrofóbica do quarto era agora pouco mais que
um adorno decorativo. Em cima de uma mesa de madeira
esverdeada, no canto oposto à porta, o busto de um jovem
político disfarçado de estadista elogiava as virtudes da
equitatividade, do nivelamento entre hemisférios e da vitória
democrática
que
a
queda
de
um
qualquer
ditador
representava. Não que Menstap o ouvisse ou, se fosse esse o
caso, que alguma vez o viesse a compreender. Distraído,
deixou a moeda cair ao chão e com ela as memórias do velho
porto. Pensava que todos os que deixara para trás eram
agora a mesma pessoa e isso incomodava–o. Pai, três irmãos
mais velhos e uma meia irmã ainda criança, amigos de
infância ou vizinhos de uma vida, todos cobertos pelo mesmo
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