Detectives Selvagens 1 - Setembro 2014 | Page 66

Inês COSTA brancura do frigorífico. Assim ela crescia em liberdade, ficava grande como as outras irmãs da televisão e eu podia visitá-la quando quisesse. A minha avó abriu a porta da cozinha que dava para o pequeno terraço forrado a azulejos coloridos e assimétricos, soltou uma exclamação e voltou-se para mim, demasiado fresca no meu vestidinho. Ia ter que me vestir muitos casacos, hoje. Perguntei-lhe se ainda estava cu de lobos. Cu de lobos era a expressão que a minha avó usava para dizer que estava nevoeiro. Ela sorriu e disse que sim. Enchouriçou-me em dois casacos e um cachecol, nem conseguia fechar os braços ou rodar a cabeça, mas consegui chegar com a mão ao saco de plástico onde se encontrava o aquário da Relíquia e pegar nele. Atravessei a nacional pela mão da minha avó e não a larguei quando chegámos ao descampado. O nevoeiro fazia desaparecer a velha fábrica cor-de-rosa e em troca agudizava a sensação de abandono daquele espaço. Fomos para a direita por memória já que não víamos nada, só ouvíamos uivos do vento que eram muito intensos e, enrolados naquela atmosfera cinzenta, pareciam vindos de outra dimensão. O ar frio queimava-me a garganta e as minhas mãos estavam geladas porque eu não tinha querido calçar luvas, queria sentir o plástico do saco a cortar-me a mão. O peso do saco era a única coisa real naquela caminhada, lembrando-me do 66