Desfazer as confusões pd52 | Page 154

fascinaram e engajaram pensadores sem distinguir suas tendên- cias políticas e ideológicas e, cada um em sua área, justificar os mais horrendos crimes do século XX. Contudo, o que Lilla nos conta não é novidade. O insuspeito Immanuel Kant já buscava, na segunda metade do século XVIII, encontrar no despótico Imperador da Prússia, Frederico II, o líder que transformaria seu reino na morada da liberdade e da razão esclarecida, acima das paixões e do arcaísmo político. Voltaire, iluminista francês contemporâneo de Kant, também flertou com esta combinação. A experiência vienense, sob a batuta dos Habsburgo, encon- trou sossego nesta combinação, não muito distante das tentati- vas, em geral malogradas, de modernização pombalina em Portu- gal e bourbônica na Espanha dos oitocentos. Seria imperdoável esquecer, nesse caso, da megalomania napoleônica já nos nove- centos, em sua combinação entre império e direitos. O que o historiador norte-americano nos revela, contudo, é o mecanismo pelo qual esta identificação entre despotismo e inte- lectualidade se reproduz. Da antiguidade aos horrores do século XX, o filotirânico (expressão dada por Lilla ao intelectual que apoia e sustenta o tirano) se ampara na convicção de que sua paixão e suas pulsões são controladas, ao ponto de servirem ao engajamento político. Assim, com um verniz filosófico suficiente para incendiar os corações dos jovens, mas pouco para dar-lhes o distanciamento que deveriam ter em relação a sua paixão, sentem-se à vontade, inclusive em sua pretensa superioridade moral, para sustentar o tirano. Mais do que isso, crêem, concomitantemente, na transfor- mação social operada pelo tirano, que imaginam domesticar. O engano é supor que suas próprias paixões estão controladas e que, ao enquadrarem o tirano, resolve-se o problema. Nada mais equivocado. A atração dos intelectuais pelos tiranos está justa- mente naquilo que são iguais; ou seja, na falta de prudência, em sua dependência às pulsões e irracionalidade. Daí que, ao projetarem no tirano a transformação que imagi- nam forjar um novo mundo e uma sociedade melhor, criam uma imagem do passado que apenas busca confirmar suas vaidades, mesmo acreditando que têm a História sob seu domínio. O resul- tado seria a dupla relação, como um jogo de espelhos, de uma revolução liderada por um tirano, cuja alma dotada da razão dos 152 Vinícius Müller