Desfazer as confusões pd52 | Page 153

De volta de Siracusa: as tiranias de reacionários e revolucionários Vinícius Müller D iz uma passagem da antiguidade que Platão, em uma visita à Siracusa, na ilha da Sicília, buscava junto a seu amigo Dion, transformar o chefe local, Dionísio, em um rei-filósofo. Tal desejo do discípulo de Sócrates se encontraria com a vontade do próprio Dionísio, disposto a ser aquele que, do alto de seu poder pessoal, se transformaria no promotor da paz e da justiça democrática. Depois de duas tentativas, Platão teria desistido de sua missão, sem esperança quanto à possibilidade de conciliar os mais nobres desejos de Dion, seu amigo, com as práticas tirânicas do Rei. Ao contrário do que supostamente pretendia o filósofo grego, Dionísio se transformara, não obstante seu manifesto interesse pelas virtudes do sábio, em um déspota dos mais sanguinários. Para muitos, esta experiência obrigou Platão a repensar a sua própria especulação acerca da trajetória que uniria um período dominado pela tirania e outro, no futuro, democrático. A viagem de Platão à Siracusa, conta-se, foi rememorada por um professor alemão a seu colega, Martin Heidegger, quando o filósofo retomava suas aulas após a experiência de ter sido, a mando do nazismo, reitor da Universidade de Freiburg. “De volta de Siracusa?”, inda- gou o colega de Heidegger, se referindo à tentativa vã (e vil) do filó- sofo em ‘domesticar’ o tirano nazista. A mesma decepção que Platão teria sentido em relação a Dionísio, a quem pouco conseguiu ‘domesticar’ além de uma fina camada de sabedoria e cultura. Estas histórias são lembradas por Mark Lilla em seu livro A mente imprudente: os intelectuais na atividade política (Record, 2017), a respeito do fascínio que as tiranias mais violentas do século XX exerceram sobre intelectuais do porte de Heidegger. Lilla, historiador norte-americano e professor em Columbia, não poupa ninguém em seu pequeno, mas denso ensaio, sobre como intelectuais deram suporte e, em alguns casos, trabalharam dire- tamente para os déspotas modernos. Da direita à esquerda, de Jaspers a Derrida, de Schmitt a Foucault, o despotismo de regi- mes e líderes como Hitler, Stálin, Mao Tsé Tung, entre outros, 144 151