Desfazer as confusões pd52 | Page 109

No entanto, aumenta, cada dia, o espectro assustador da exclusão social. O poder de compra interno entrou em colapso; a fome eclodiu; hospitais e escolas fecharam as portas e milhões de crianças viram negado seu direito à educação primária e ao mínimo existencial. Ainda se ouve o choro dos meninos perdidos do Sudão, cativos a US$ lOO (cem dólares) por cabeça, como noticiava, na época, a mídia internacional. Em plena aridez do deserto africano, mulheres e crianças negras da tribo dinka esperavam acorrentadas e famintas para serem vendidas e o mercador negociava com o homem branco cada ser humano como se eles fossem uma propriedade ou merca- doria rentável, na triste realidade do Sudão, em pleno século XXI. Lembra-nos essa cena dantesca, a visão de horror do poeta dos escravos Castro Alves que, na descrição da tragédia de seu “Navio Negreiro”, sob o olhar atento da águia do oceano, assim contou: Era um sonho dantesco... O tombadilho que das luzernas aver- melha o brilho, em sangue a se banhar. Tinir de ferros... esta- lar do açoite... Legiões de homens negros como a noite, horren- dos a dançar. Negras mulheres, suspendendo as tetas, magras crianças, cujas bocas pretas regam o sangue das mães. Outras, moças... mas novas, espantadas, no turbilhão de espectros arrastadas, em ânsia e mágoa vãs. Presa nos elos de uma só cadeia, a multidão faminta camba- leia, e chora e dança ali! Um de raiva delira, outro enlouquece... Outro, que de martírios embrutece, cantando, geme e ri! Quem são estes desgraçados, que não encontram em vós, mais que o rir calmo da turba que excita a fúria do algoz? Quem são...? Se a estrela se cala, se a vaga à presa resvala, como um cúmplice fugaz, perante a noite confusa... Dize-o tu, severa musa, Musa libérrima, audaz! São os filhos do deserto onde a terra esposa a luz. Onde voa em campo aberto a tribo dos homens nus... São os guerreiros ousados, que com os tigres mosqueados combatem na solidão... Homens simples, fortes, bravos... Hoje, míseros escravos sem ar, sem luz, sem razão... E os "navios negreiros" ainda aportam nos mares africanos, em pleno século XXI, e repetem o espetáculo dantesco, que o poeta descreve, à luz do tombadilho do século XIX, enquanto o povo Cidadania dos juízes e desenvolvimento sustentável 107