Contemporânea Contemporânea #8 | Page 19

Face oculta, azul do araçá: o Tropicalismo entre a vanguarda e o mercado

Renato de Barros Pinto

Alexandre Fernandez Vaz

O Tropicalismo veio à cena com o alarde típico das ruidosas vanguardas em meio ao já conturbado e efervescente ambiente da música popular na segunda metade da década de 1960, período marcado pela contestação ao governo militar e pela realização de grandes festivais televisivos em cujo decorrer foram assentadas as bases da moderna MPB. Passando ao largo de uma crítica que mais o celebra que o elucida, e para além dos aspectos circunstanciais dos embates travados à época, podemos nos perguntar sobre a efetiva contribuição do Tropicalismo na revisão dos parâmetros estéticos da canção popular.

Sobretudo em seu disco-manifesto – e muito em função da atuação decisiva do arranjador Rogério Duprat – o Tropicalismo realizou um esforço de “atualização” da canção popular a partir das experiências dos Beatles que, desde o álbum Revolver, ampliavam arrojadamente as fronteiras do pop. Uma de suas conquistas expressivas, assimilada pelos tropicalistas, é a convivência, no âmbito da canção, de elementos heterogêneos que permitem a consideração de estereótipos musicais por meio de um distanciamento crítico, libertando-os para novos usos. Assim, por exemplo, os clichês de bolero evocados em “Lindonéia” remetem aos vocais típicos do ieieiê em “Happiness is a Warm Gun”, ambos deslocados e submetidos ao estranhamento. A assimilação de elementos da música contemporânea por parte dos Beatles (“A day in the Life'', “Number 9”) é um outro aspecto que se faz presente na produção tropicalista, a exemplo de “Panis et Circensis” ou da introdução

de “É Proibido Proibir”.

No plano poético, destaca-se a justaposição de imagens fragmentadas, como se pode ouvir em “Tropicália”, “Geleia Geral” e “Alegria, Alegria”. O alcance estético desse procedimento se amplia por sua correspondência com a realidade cultural brasileira, notavelmente marcada pela superposição de temporalidades e extratos culturais diversos, postos em contiguidade pelo acelerado processo de urbanização, e com o correspondente imaginário urbano alimentado pelos mass media (“O Sol” que “se reparte em crimes, espaçonaves, guerrilhas” e “em Cardinales bonitas”, era um tabloide carioca que então circulante, flertava com a contracultura).

A técnica de justaposição de imagens remete ao cinema. De fato, a analogia salta aos ouvidos em canções como “Domingo no Parque”, em que a aceleração usual de uma roda de capoeira se conjuga com o desenrolar de uma estória trágica, contada por meio dos mais cinematográficos versos:

“Juliana girando – oi girando

Oi na roda gigante – oi girando

Oi na roda gigante – oi girando

Seu amigo João – oi João

O sorvete é morango – é vermelho

Oi girando e a rosa – é vermelha

Oi girando oi girando – é vermelha

Oi girando oi girando – olha a faca! olha a faca!

Olha o sangue na mão – ê José

Juliana no chão – ê João

Outro corpo caído – ê José

Seu amigo João” - ê João”

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ARTE E CRÍTICA

Renato de Barros Pinto

Alexandre Fernandez Vaz