Contemporânea Contemporânea #8 | Page 18

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quanto uma xícara de café [...]. O Pervitin espalhou-se por todas as camadas da população” (p. 57). Ohler nos relata o consumo, as quantidades, os absurdos feitos a partir das várias ingestões diárias, além dos efeitos no decorrer das ações alemãs na II Guerra.

Sua linguagem é tão fluida que o livro prende a atenção de leitores do início ao fim. O conteúdo é dividido em capítulos curtos, justamente com o propósito de deixar a leitura mais agradável. Como Ohler tratará da história sob o enfoque farmacológico, o livro traz no início uma “bula” (ao invés de um prefácio), contendo as características do “remédio” a ser “consumido”. E faz um alerta: “Esse medicamento pode causar efeitos colaterais, que não acometem necessariamente todas as pessoas (...). Como contrapartida, a leitura deve ser feita, em todo caso, até o final, visando à cura dos efeitos causadores de medos e convulsões” (p. 13).

O manuscrito original de Ohler (Der Totale Rausch: Drogen im Dritten Reich) foi vendido para tradução em mais de 20 idiomas. Eu mesmo encontrei o livro com títulos/capas diferentes em países como Canadá (Blitzed: Drugs in Nazi Germany) e Espanha (El gran delirio: Hitler, drogas y el III Reich). A tradução para o português brasileiro, no geral, está benfeita.

Segundo o autor, o mito de “inimigo das drogas e abstêmio” que Hitler ganhou a partir das propagandas do Nacional-Socialismo deve ser posto de lado para entender toda a dinâmica farmacológica do Terceiro Reich a partir da qual Ohler estrutura sua obra. No entanto, uma sutil crítica de minha parte: apesar da “bula de remédios” como alerta e de todas as enigmáticas e excitantes explicações sobre as drogas consumidas, o autor pressupõe que o leitor saiba a distinção entre heil (salve, em alemão) – a saudação usualmente proferida a Hitler na época – e high (alto, em inglês). A metáfora com a saudação “Heil, Hitler” popularmente empregada nos tempos do Nazismo e o sarcasmo

eleito pelo autor “High, Hitler” (no sentido referente a “chapado”) fica no intertexto. A única frase explicativa aparece, já quase no final do livro, como legenda de uma foto isolada na página 252: “High em vez de heil: de abstêmio a viciado”. Nesse sentido é estranho que a edição brasileira seja única com esse trocadilho no título, visto que a portuguesa seguiu a tradução espanhola (como Delírio total...).

Curiosamente, a tese que Ohler sustenta aparecerá depois da metade do livro quando ele afirma que, depois de tanta droga consumida, Adolf Hitler simplesmente “não podia mais retornar à razão: acabaria tendo de perceber imediatamente a loucura de todo o empreendimento” (p. 247). Isso parece ter guiado suas interpretações ao longo da obra e, dessa forma, é interessante a mensagem subliminar segundo a qual a farmacologia seria a continuação da política, porém sob outras bases e com novos meios.

Independente de ter se tornado Best Seller aqui ou acolá, High Hitler de Norman Ohler é mais do que um livro de curiosidade histórica. Ele nos propõe rever a história oficial contada à luz de outra perspectiva e nos provoca a questioná-la.

OHLER, Norman. High Hitler: como o uso de drogas pelo Führer e pelos nazistas ditou o ritmo do Terceiro Reich. Tradução Silvia Bittencourt. 1ª Ed. São Paulo: Planeta: 2017. 375 p.

Wagner Xavier de Camargo é cientista social, com mestrado em Educação Física. Atualmente bolsista FAPESP, desenvolve pós-doutoramento em Antropologia das práticas esportivas pela UFSCar (Universidade Federal de São Carlos). É doutor em Ciências

Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e foi bolsista da Deutscher Akademischer Austausch-Dienst (DAAD) em estágio internacional na Freie Universität Berlin (FU Berlin), Alemanha. Insere-se no campo dos estudos antropológicos das práticas esportivas e dedica-se, com especial destaque, à investigação das relações de gênero, corporalidades e sexualidades na arena esportiva.