Contemporânea Contemporânea #7 | Page 18

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Uma inclusão pelo mercado, mas que pode ir mais além

Amaro Fleck

Desde sua criação, em 2003, o programa Bolsa Família vem sendo alvo de críticas e de elogios vindos de todos os espectros políticos. Se seu êxito em melhorar as condições de vida da população mais vulnerável parece estar fora de questão, o fato de oferecer uma remuneração constante sem a contrapartida do trabalho parece escandaloso para parte da população (não obstante esta não se insurja contra a remuneração sem trabalho auferida por aqueles que têm investimentos financeiros), enquanto o fato de propor uma inclusão social por meio do consumo e do mercado parece ser o elemento problemático para outra.

De fato, programas de renda mínima, ou melhor, de transferência condicional de renda, caracterizam-se antes por promover uma inclusão ao consumo do que, propriamente, à cidadania. Aqueles que recebem o benefício conseguem ingressar no mercado e adquirir bens necessários, embora certamente não suficientes, para sua subsistência. Disto não decorre que ingressem também nas esferas cívicas, participando da discussão e da criação das políticas que os afetam. Mas caberia o questionamento se realmente se está, neste caso ao menos, frente a duas escolhas excludentes. Isto é, haveria a alternativa de propor uma inclusão social por meio da cidadania e não do mercado?

Parece-me que neste caso não. O público beneficiado por tais programas é aquele que se encontra nas piores condições sociais, padecendo de males que poderiam (e deveriam) há muito ter sido eliminados (analfabetismo, doenças evitáveis, entre outros

sofrimentos). A recepção de uma renda mensal, ainda que mínima, certamente contribui para mitigá-los, ao mesmo tempo em que parece fomentar a própria autonomia daqueles que recebem o benefício na medida em que são eles que decidem o que fazer com a renda.

Por conseguinte, longe de impedir a inclusão cidadã, programas como esse funcionam para assegurar as condições mínimas para uma possível participação política, na medida em que são bem-sucedidos na remoção dos entraves que, estes sim, impedem tal inclusão: fome, miséria, analfabetismo. Quem ainda não garantiu o almoço não pode se preocupar com a assembleia do bairro.

Ainda que tais programas possam ser vistos como uma forma de inclusão social por meio do mercado, e, portanto, como algo que fortalece ainda mais as esferas privadas em detrimento das públicas, seus efeitos em termos de cidadania não devem ser menosprezados: bem pode ser o caso de que estas pessoas, na medida em que se tornem mais autônomas e com maior autoestima, não se contententem com o mínimo que lhes está sendo oferecido.

Amaro Fleck é Professor de filosofia da Universidade Federal de Lavras, em Minas Gerais. Possui graduação, mestrado e doutorado pela Universidade Federal de Santa Catarina. Pesquisa teoria crítica da sociedade, em especial a teoria social de Karl Marx e de Theodor Adorno.

POLÍTICA E SOCIEDADE